Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

domingo, 3 de outubro de 2010

Epistemologia, diálogos e saberes: Estratégias para práticas interparadigmáticas em saúde mental

Eduardo Mourão Vasconcelos: Psicólogo, cientista político, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, e militante da luta antimanicomial.

1) Introdução: a luta por políticas públicas universais, acessíveis e eficazes, os princípios de intersetorialidade e integralidade, e suas relações com a interdisciplinaridade

1.1) A responsabilidade social por problemas complexos e multidimensionais e a questão da interdisciplinaridade A tendência crescente para a especialização e fragmentação das diversas áreas de conhecimento, das competências profissionais e das técnicas de intervenção acabam tendo efeitos perversos em políticas sociais, como por exemplo:

- um funcionamento dos serviços em função da competência fragmentada dos profissionais, sem abertura para novas abordagens que buscam assumir toda a complexidade dos problemas em foco;

- a seleção, a desresponsabilização e a negligência em relação a usuários, temas e questões que não se encaixam nas competências especializadas de cada um dos profissionais e serviços.

Assim, programas em políticas públicas voltados para situações complexas e multifacetadas exigem a responsabilização dos vários programas e equipes pela globalidade das necessidades dos cidadãos, implicando práticas interdisciplinares, intersetoriais e voltadas para a integralidade.

1.2) A questão da intersetorialidade Uma tendência histórica das políticas públicas no ocidente e no Brasil tem sido a fragmentação administrativa, institucional e financeira, a descontinuidade, a superposição e até mesmo a competição entre esforços e iniciativas semelhantes por parte de diferentes agências governamentais. Chamamos de intersetorialidade à visão mais ampla dos interesses comuns e de ação integrada e compartilhada no planejamento e na ação de diferentes instâncias de política pública. Isso pode acontecer em diferentes níveis. No plano macro, implica em um desenvolvimento econômico e social que articule as diversas agências governamentais e da sociedade civil em um planejamento global e estratégico coerente e de ações integradas e colaborativas em rede, com referência no território, tendo o controle social como espaços privilegiados de sua implementação, monitoramento e avaliação. No plano regional e local, significa uma articulação “por baixo”, conhecer o conjunto de políticas e programas já existentes, para gerar linhas de cooperação, intercâmbio de conhecimento e experiências, e sugerir mecanismos integrados de financiamento, propor iniciativas e ações conjuntas e compartilhadas, principalmente entre diferentes agências e instâncias institucionais. No plano local e micro, temos a proposta de apoio matricial, que já vem sendo desenvolvida no campo da saúde pública do país, inclui as seguintes características:

- os membros das equipes de uma área específica de política (ex.: saúde, assistência social) dão apoio matricial às equipes de outras áreas do mesmo território, programando uma carga horária para encontros periódicos e formas de contato para demandas inesperadas ou intercorrências;

- as equipes de programas diferentes assumem responsabilidades compartilhadas, como por exemplo, desenvolver ações conjuntas, discutir e compartilhar casos mais complexos de serviços, indivíduos ou famílias, criar estratégias comuns para problemas mais graves (violência, abuso de álcool e outras drogas, outros grupos de risco, etc), em uma lógica diferente e que supera as articulações típicas do encaminhamento;

- o fomento a ações comuns que visem a transformação da cultura difusa na sociedade, tendo em vista a valorização dos princípios e valores da cidadania e das novas políticas sociais;

- o estímulo e desenvolvimento de ações de mobilização de recursos comunitários locais, integrando as diferentes agências governamentais atuantes na área;

- a promoção de iniciativas compartilhadas de capacitação de trabalhadores e lideranças comunitárias.

Além disso, temos também o encaminhamento responsável e monitorado, que exige conhecimento e articulação orgânica entre agências e serviços públicos; contato permanente via telefone ou e-mail; avaliação prévia da possibilidade de encaminhamento; e monitoramento dos resultados e das responsabilidades de cada um no desenvolvimento da intervenção.

1.3) A questão da integralidade Do ponto de vista das bases legais e normativas, o princípio da integralidade do cuidado e da assistência está inserido em legislações importantes no Brasil. Como exemplos, temos a diretriz básica do SUS, com base na Constituição Federal de 1988 (Art. 198): “atenção integral, com prioridades para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, ser refere em seus artigos 1.o e 3.o a uma “atenção integral à criança e ao adolescente”, que lhes propicie “o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e igualdade”.

Podemos ver então que o termo „integral‟ e „integralidade‟ aparecem em diferentes contextos, com variações em seu sentido e operacionalização2:

2 Para maiores detalhes, ver Vasconcelos, 2008.

a) a integralidade como princípio ético-político e ‘imagem objetivo’ utópica (Mattos, 2001);

b) a integralidade como necessidade de interação complexa entre os paradigmas de conhecimento que servem de base aos programas sociais universais, ou seja, como princípio que requer práticas interdisciplinares;

c) a integralidade como princípio de reconhecimento das necessidades específicas dos diferentes grupos geracionais, de gênero e de situação existencial; de diferentes necessidades dentro de cada um destes grupos; e dos variados grupos econômicos, sociais, culturais e étnicos nas comunidades locais;

d) a integralidade como princípio integrador de práticas preventivas e assistenciais de diferentes níveis de complexidade; este é o sentido de integralidade indicado na Constituição Federal, em sua referência ao SUS. Uma atenção que se proponha integral não deve atuar apenas nas demandas explícitas de cuidado e assistência curativa, mas também de prevenção e promoção da saúde;

e) a integralidade como princípio orientador da organização e do processo de trabalho, como um modo mais flexível da organização do trabalho, de gestão democrática e criativa das equipes e serviços, e de estímulo à capacidade de aprender a aprender entre as culturas profissionais implicadas;

f) a integralidade como princípio integrador de políticas, significando ampliar o horizonte de problemas integrados à intervenção e ultrapassar as separações artificiais das políticas setoriais; assim, ela está intimamente associada à intersetorialidade.

2) Conceitos básicos para se pensar as práticas interdisciplinares3

3 O leitor interessado neste tópico pode fazer uso de outro trabalho de minha autoria (Vasconcelos, 2002).

2.1 ) O conceito de paradigma: Foi forjado por Thomas Khun nos anos 70, no já clássico livro “A estrutura das revoluções científicas”. Edgar Morin, nos anos 80 e 90, se apropriou deste conceito, avançando uma crítica ao pensamento fragmentado contemporâneo, e propõe o que chama de paradigma da complexidade. Segundo Morin, os paradigmas consistem em:

a) uma promoção/seleção dos conceitos-mestres da inteligibilidade das concepções científicas e teorias, e que por outro lado excluem ou subordinam os conceitos que lhes são antagônicos. Exemplos são os conceitos de ordem para os deterministas, ou de estrutura para os estruturalistas, e que por sua vez rejeitam respectivamente os conceitos de desordem e de acontecimento;

b) um processo que atribui validade e universidade às operações lógicas-mestras preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio (exclusão-inclusão; disjunção-conjunção; implicação-negação), em detrimento de outras, dando aos discursos e às teorias que controla as características da necessidade e da verdade;

c) um processo de articulação das estruturas conceituais e lógicas com um contexto específico de determinações sociais, econômicas e políticas em um plano subterrâneo, inconsciente e soberano em qualquer teoria ou ideologia, controlando o pensamento consciente.

Desta forma, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles, através inclusive de dimensões profundas, no nível do mito e do sagrado, às vezes até mesmo sob a fachada de ciência ou razão, estabelecendo tabus, proibições e bloqueios.

2.2) O paradigma da complexidade
Morin se contrapõe ao paradigma da simplicidade, que inspira a fragmentação atual das ciências, ao que chamou „paradigma da complexidade’. Por complexidade, entende “o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, as partes entre sí. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade”. Daí, ela apresentar-se „com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza...‟ ” (Morin e Le Moigne, 2000: 38).

2.3) Alguns conceitos implícitos às ‘práticas inter-’
Minha tese fundamental neste ponto da argumentação é a seguinte: os termos interdisciplinaridade e transdisciplinaridade apontam, mas não esgotam os maiores desafios do fenômeno e as várias possibilidades de interação criativa entre campos de conhecimento e prática humana. É mais correto falarmos de práticas multi-, pluri-, inter- e trans- , acompanhadas por esses complementos diversificados, como em: práticas multiprofissionais, pluridisciplinares, interteóricas, interparadigmáticas, etc. Assim, a expressão „práticas interparadigmáticas‟ me parece constituir a melhor expressão para o que queremos dizer, dada a importância fundamental da noção de paradigma nas abordagens voltadas para o tema da complexidade. Em síntese, as ‘práticas inter-’ significam a interação entre as fronteiras de campos de saber e fazer, tanto formais, como informais, como na interação com o campo da arte e com o senso comum e/ou cultura popular.

2.4) Ecletismo e pluralismo:
Em minha concepção, ecletismo significa a conciliação e o uso simultâneo, linear e indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar as diferencas e incompatibilidades na origem histórica, na base conceitual, epistemológica e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um destes pontos de vista.

Para o conceito de pluralismo, retomo as palavras de Coutinho: “é sinônimo de abertura para o diferente, de respeito pela posição alheia, considerando que essa posição, ao nos advertir para os nossos erros e limites, e ao fornecer sugestões, é necessária ao próprio desenvolvimento de nossa posição e, de modo geral, da ciência” (Coutinho, 1994: 14). Em outras palavras, a pactuação de uma vontade coletiva (base da gestão social coletiva, e que impeça as múltiplas associações de interesses de caírem na fragmentação corporativa ou particularista), requer a conservação dessa multiplicidade, diversidade e pluralismos de sujeitos. Coutinho nos lembra de que nas experiências históricas nas quais esse pluralismo foi negado, tivemos claros casos de despotismo. Também nos alerta de que o pluralismo não significa ecletismo ou relativismo moral, ou seja, a conciliação de pontos de vista teóricos e éticos inconciliáveis.

3) Algumas estratégias epistemológicas para práticas inter-paradigmáticas 4

4 Aos que se interessam por esta temática e pelas referências bibliográficas específicas, ver Vasconcelos (2002).

3.1) A dinâmica necessária entre filosofia do espírito e da natureza na leitura de Freud por Hyppolite Jean Hyppolite (1907-1968) (Universidade de Strasbourg, Sorbonne, École Normal Supérieure e College de France), centrou seu trabalho principalmente na releitura e interpretação de Hegel, e a partir delas, estabelecendo uma interação entre a psicanálise e a filosofia. Para ele, várias obras de Freud expressam claramente uma dualidade de modelos teóricos, em que se alternam a ordem da causalidade e da energia psíquica (com sua inspiração em modelos termodinâmicos) e a ordem do sentido e da significação (modelo hermenêutico).

Assim, para Hyppolite, qualquer tentativa de síntese, ou de escolha de uma concepção contra a outra, trairiam a originalidade dessa tensão que Freud não aboliu em seu pensamento e que mantém viva uma das problemáticas mais radicais na história da filosofia, o dualismo entre corpo e espírito, exigindo portanto a permanência de um debate que não poderia ser suspenso a priori.

3.2) Transversalidade e a transdisciplinaridade em Guattari e Deleuze Felix Guattari (1930-1992) foi um militante francês de esquerda, anticolonialista e ecologista, e ativista libertário de várias frentes de contestação e reinvenção das práticas psiquiátricas tradicionais e das diversas formas de opressão socio-institucionais. Sua esquizoanálise enfatisa a heterogeneidade dos componentes dos processos de subjetivação, centrando-se nas suas dimensões diretamente ecológicas, não representacionais e a-significantes.

Assim, para ele, o coeficiente de transversalidade significa então o grau de abertura de um indivíduo ou grupo para levar em conta estas múltiplas dimensões que atravessam e produzem suas vidas e subjetividade, no sentido de viverem o risco de se confrontarem com o novo e a alteridade, assumir o sentido de sua praxis e se instaurarem como indivíduos e grupos sujeitos, e não grupos sujeitados. Daí, a exigência inevitável da transdisciplinaridade, como estratégia de abordagem dos diversos componentes transversais que atravessam qualquer realidade humana e social. Esta se sustenta na acepção de um campo epistemológico e semiótico não representacional comum aos diversos fluxos e processos sociais e materiais, que chama de „inconsciente esquizoanalítico ou maquínico”. O inconsciente maquínico se constitui como produção desejante em aberto, em constante devir, atravessando ordens muito diferentes de caráter social, material e espirituais, articulados com os sistemas de potência e formações de poder que nos cercam, sem objetos parciais tipificados e estruturas universais, como na psicanálise. Guattari propõe uma micropolítica da criação e diferença permanente, de constante crítica ao estabelecido, de novas formas de subjetivação, através de um movimento de „revolução molecular‟. Esta retoma os fluxos desejantes transversais ligados à economia, aos processos políticos e sociais, ambientais, de gênero, de raça/etnia, de identidade erótica, de estados subjetivos, etc, que perpassam os indivíduos, grupos, instituições, os processos gerenciais e técnicos, etc.

3.3) A estratégia de substituição do contexto de argumentação inspirado em Wittgenstein

Ludwig Josef Wittgenstein (1889-1951), filósofo de origem austríaca, viveu a maior parte de sua vida profissional em Cambridge (UK). Na segunda fase de seu pensamento, produziu sobretudo a obra “Investigações Filosóficas”, publicada em 1953, em que propõe o desvendamento da linguagem em seus usos e funções práticas. A linguagem corresponderia a um “jogo de palavras”, como ferramentas utilizadas pelo operário para martelar ou serrar, como estratégias múltiplas para indagar, afirmar, descrever, argumentar, etc, cada uma com regras próprias, não sendo possível uma única estrutura lógica e formal. Este conceito de „jogos de palavras‟ pode ser lido como muito semelhante ao que chamamos aqui como campos teóricos, epistemológicos ou paradigmáticos particulares.

Fritz Wallner, filósofo contemporâneo da Universidade de Viena, sugere uma estratégia interdisciplinar através do dispositivo wittgenteiniano de substituição do contexto de uma argumentação. Quando se tira uma corrente de argumentos de seu contexto, pode-se ter pura irracionalidade, mas também podemos fazer emergir determinadas estruturas da corrente argumentativa que dão nova luz à narrativa, principalmente em relação às suas concepções extra-científicas. Este estranhamento pode ser feito por duas estratégias básicas: pela tentativa de tradução/decodificação ou conversão de um construto para a linguagem comum do homem da rua, ou pela tentativa de explicar um construto pelos métodos de outro. O estranhamento causado por estas duas estratégias fornece meios para promover uma melhor percepção crítica dos limites e absurdos de diversos elementos dos métodos, teorias e conceitos utilizados; uma abertura da „caixa preta‟ para fora de sua linguagem específica, permitindo maior acessibilidade à troca de conhecimento interdisciplinar; bem como a abertura de um diálogo com o senso comum, com a cultura popular e a opinião pública, permitindo discutir melhor os valores ético-políticos que o sustentam, inclusive para aumentar a sua legitimidade social. O discurso gerado pela operação de estranhamento não possui o estatuto de autoridade ou verdade para desqualificar ou fazer o „coroamento simbólico‟ de um construto original, já que inteiramente dependente da perspectiva particular do(s) observador(es) que o constrói(em).

3.4) A crítica da totalidade abstrata por Adorno e Horkheimer e a proposta de dialética negativa de Adorno

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) constituem com Walter Benjamin os principais nomes da primeira geração da Escola de Frankfurt e de sua teoria crítica, trabalhando nas áreas da filosofia, teoria da cultura, estética, música e teoria social. Adorno critica, particularmente em „A Dialética Negativa‟ (1966), as formulações de inspiração neo-hegelianas da possibilidade de que sujeito e objeto do conhecimento possam se fundir, como na definição de conhecimento como autoconhecimento do Espírito absoluto, ou como o proletariado como sujeito e objeto do processo histórico. Neste sentido, a totalização se torna uma utopia necessária, mas qualquer tentativa de realizá-la, conceitual e praticamente, quando se está imerso no reino da necessidade, é necessariamente repressiva e totalitária. Neste sentido, “o todo é falso”. Assim, temos a impossibilidade da dissolução do particular ao universal, onde os termos mantêm um princípio de não identidade (a contradição permanente como princípio criativo): a parte (o indivíduo singular) não pode ser absorvido pelo todo (a totalidade social), sob pena do recalcamento do particular e do totalitarismo. Daí, a recusa de redução do freudismo no marxismo e vice-versa, ou de ambos em uma disciplina totalizante, como no freudo-marxismo de Reich, Fromm e Marcuse. Se nega qualquer possibilidade de „síntese utópica‟ entre civilização e pulsão, de cura, normalidade e totalidade, projetando então uma dialética negativa incurável, como contradição permanente da vida humana.

Assim, a proposta de interdisciplinaridade de Adorno sugere uma relação de contraponto entre os dois campos de conhecimento, na qual cada um funciona como limite negativo do outro, criticando-se e relativizando-se mutuamente, evitando qualquer pretensão totalizante, numa sinfonia dissonante, às vezes cacofônica, e fundada na recusa de qualquer entrelaçamento melódico.

3.5) As bases interparadigmáticas da Psiquiatria Democrática italiana por Franco Basaglia

Franco Basaglia (1924-1980) constituiu a principal liderança do movimento de reforma psiquiátrica na Itália, denominado de Psiquiatria Democrática, e que mais tarde inspirou profundamente movimentos similares em todo o mundo. Militante político e membro da Partido Comunista Italiano, Basaglia fez dialogar sua formação marxista (na qual Gramsci constituía a principal referência) com as principais experiências e teorias inovadoras em psiquiatria de seu tempo e estabeleceu um forte debate interteórico e prático com elas. Exemplos desta interação se deram inicialmente com a fenomenologia existencial, com os movimentos de psicoterapia institucional francesa (Tosquelles e Oury) e com a comunidade terapêutica inglesa (Maxwell Jones). Sua aproximação com a fenomenologia existencial produziu um movimento téorico fundamental. A doença mental não é propriamente negada, como na antipsiquiatria, mas compõe um „duplo‟ que se sobrepõe à relação da cultura e dos profissionais com os usuários de serviços, lhe negando uma história pessoal, subjetividade e identidade própria como ser humano particular.

Para desconstruir este duplo, Basaglia se apropria do dispositivo de époché de Husserl (ou seja, de sua operação de colocar entre parêntesis o fenômeno e suas incrustações humanas e culturais), colocando então entre parêntesis a doença e o modo como foi classificada, para que possamos entrar então em contato com a pessoa do usuário, em sua toda a sua humanidade e singularidade. Temos aqui uma passagem paradigmática operada por Basaglia, certamente inspirada em Sartre, para se acercar da singularidade representada pelos seres humanos particulares e das especifidades do ato clínico, na busca de um ato terapêutico desarmado e aberto para o novo, como constituintes fundamentais do encontro entre seres humanos singulares. Esta ruptura não implica em uma impossibilidade da crítica sócio-histórica na análise dos fenômenos da clínica, mas apenas que esta crítica tem limites e que o campo não pode ser completamente objetivado por qualquer tipo de conhecimento alheio às particularidades do campo.

3.6. O método de articulação circular entre diferentes saberes de Edgar Morin Edgar Morin, importante intelectual francês ainda vivo e ativo, desenvolveu uma ampla sistematização acerca dos paradigmas da simplificação e da complexidade, bem como as premissas e os primeiros movimentos de seu método de articulação circular contínua entre os campos de saber. O método desenvolvido por Morin constitui uma tentativa „enciclopédica‟ de articular os vários tipos de conhecimento das ciências físicas, das ciências biológicas e dos saberes antropossociológicos, mas sem cair na velha “mania totalitária dos grandes sistemas unitários, que encerram o real num grande espartilho de ordem e coerência”. É quase como um “anti-método”, diferente do cartesiano, que visava o conhecimento seguro, partindo apenas do que é claro e distinto.

Morin defende a importância do obscuro e do incerto, buscando reorganizar o nosso sistema mental para “reaprender a aprender”. Sua metodologia busca rearticular os três impérios (física, biologia e antropossociologia), cada um hermético em relação aos outros pela fragmentação disciplinar, produzindo uma „circulação reflexiva‟, através de um anel epistemológico de duas entradas:

Physis - Biologia - Antropossociologia
A ‘Circulação Reflexiva’ de Edgar Morin


Busca-ser um processo de rotação, pelo qual se busca “fisicar nossas noções, depois ressocializá-las, depois refisicalizá-las, depois ressocializá-las, e assim por diante até o infinito” (Morin, 1997: 264).

3.7) O atual processo de transição paradigmática em Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é professor da Universidade de Coimbra e professor visitante de várias universidades importantes da Europa e Estados Unidos, e é um dos principais „gurus‟ dos Forums Sociais Mundiais realizados nesta década. Para ele, a modernidade foi marcada pela degradação das energias emancipatórias em favor das energias de regulação, em uma crescente racionalização da vida coletiva e individual, perdendo o seu potencial de renovação e entrando em crise acentuada nesta virada do milênio.

Assim, vivemos em um processo de “transição paradigmática” de longo prazo em que podemos apenas visualizar os indícios do novo paradigma, que ocorre tanto no nível societal quanto epistemológico.

Não é mais possível conceber estratégias emancipatórias genuínas no âmbito do paradigma moderno, inclusive no de sua teoria crítica, já que se limitam a reiterar estratégias regulatórias do mesmo tipo. Assim, este impasse só pode ser superado com o recurso da „imaginação utópica‟, para vislumbrar os primeiros traços de novos horizontes emancipatórios e paradigmas emergentes, criando um novo senso comum emancipatório, na busca de um “conhecimento prudente para uma vida decente”.

Se a ciência moderna se baseou em uma ruptura epistemológica com o senso comum, o novo paradigma realiza uma segunda ruptura, transformando o conhecimento científico em um novo senso comum emancipatório, acentuando os componentes utópicos e libertadores do senso comum convencional. Santos sustenta que não há um princípio único de dominação, resistência e transformação social, havendo na verdade várias formas de opressão, muitas das quais negligenciadas pela teoria crítica moderna.

Assim, não é mais possível reunir todas as resistências e suas agências sob a alçada de uma mesma teoria comum e, assim, necessitamos fortemente de uma teoria da tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis, permitindo aos atores coletivos „conversarem‟ sobre as opressões a que resistem e sobre os seus ideais e utopias.

4) Algumas observações críticas e considerações finais
Como diz Santos, no atual momento podemos apenas vislumbrar os primeiros traços de novos horizontes emancipatórios e dos paradigmas emergentes de caráter interdisciplinar. Em minha opinião, nenhuma das propostas pode ser considerada totalmente satisfatória e auto-suficiente, pois se apresentam muitos pontos positivos, revelam também particularidades, limitações e problemas que precisam ser compreendidos. Algumas destas limitações já foram indicadas no livro “Complexidade e pesquisa interdisciplinar”, de minha autoria (Vasconcelos, 2002), mas podemos chamar a atenção aqui para certas críticas e idéias-força fundamentais, das quais a meu ver não se pode abrir mão:

a) A tentação problemática de se limitar apenas a um plano epistêmico comum no qual os diversos níveis da realidade pudessem ser reduzidos a características similares, sem assumir as conseqüências mais radicais das diferenças entre eles, como na proposta do inconsciente maquínico de Deleuze e Guattari. Este tipo de visão pode levar, a meu ver, a uma idealizada auto-suficiência da teoria que a formula, com se pudesse sustentar sozinha a reflexão e a prática interdisciplinar.

b) A visão idealizada de uma pretensa possibilidade de tradução de um campo epistêmico para o outro, que permitiria uma passagem mais „tranquila‟ entre eles, como na proposta wittgesteiniana de Wallner e em Boventura de Souza Santos. Neste âmbito, algumas idéias e princípios contrários à idéia de tradução são fundamentais:

- o princípio da incomensurabilidade de Khun;

- as recomendações de Hyppolite de evitar qualquer tentativa de síntese, mantendo a tensão sustentada por Freud em suas obras;

- a ênfase no contraponto e na dissonância permanente de Adorno, recusando qualquer tentativa linear de síntese entre dois campos, como teria sido proposta por exemplo no freudo-marxismo.

c) Na perspectiva inversa, a possibilidade de uma dialética negativa pode tender para a paralisia. Assim, a despeito da importância de sua ênfase no contraponto e na dissonância, em Adorno ela ganha um estatuto tão estrutural que acaba imobilizando o potencial de resistências parciais concretas.

d) As idéias de complexidade e de abordagens/práticas interdisciplinares sempre apresentam riscos de ecletismo, de circulação liberal inconseqüente, de percursos acadêmicos diletantes e de indiferenciação ético-política. É necessário reconhecer as dificuldades e as tensões na passagem entre diferentes teorias e campos de conhecimento, particularmente no campo ético-político dos valores e da práxis.

Assim, é principalmente nesta perspectiva que, em nossas práticas interdisciplinares, devemos explicitar e sustentar de forma inequívoca o nosso compromisso com projetos emancipatórios, ou seja, no campo dos valores básicos de fundo e da práxis social e política concreta.

Referências
COUTINHO, CN – Pluralismo: dimensões teóricas e políticas, in Cadernos ABESS 4, São Paulo, Cortez, 1994.
MATTOS, RA - Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In R Pinheiro e RA Mattos (org) - Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro, IMS/UERJ/ABRASCO, 2001.
MORIN, E – O método, vol IV. Mens Martins, Public. Europa-America, 1997. MORIN, E e LE MOIGNE, G – A inteligência da complexidade. Petrópolis, Vozes, 2000
VASCONCELOS, EM – Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa. Petrópolis, Vozes, 2002

Nota do blog: no link abaixo encontra-se disponibilizado o arquivo eletrônico (.PDF) mais informações sobre EPISTEMOLOGIA.
http://www.4shared.com/document/z-nx4qBi/O_que__Epistemologia.html

universitarios cybermedios.org
Un recorrido didáctico por los principales escenarios de la epistemología. Un trabajo de la FES Acatlan, México, septiembre, 2006.

Carl Gustav JUNG - Psicologia Analítica

Kesswil, 26 de julho de 1875 — Küsnacht, 6 de junho de 1961, foi um psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, também conhecida como Psicologia Junguiana.

"Quanto mais velho fico, mais me impressiona a fragilidade e incerteza de nosso conhecimento e tanto mais procuro refúgio na simplicidade da experiência imediata, para não perder o contato com as coisas essenciais, isto é, as dominantes que governam a existência humana [...]. É bem possível que estejamos olhando o mundo do lado errado e que poderíamos encontrar a resposta certa, mudando nosso ponto de vista e olhando o mundo pelo lado correto, isto é, não pelo lado de fora, mas de dentro".

Entrevista com Jung na década de 50.

Meu avô já me dizia, melhor é beber diretamente na fonte, então segue abaixo links dos livros publicados de JUNG já formatados em arquivo eletrônico (.PDF)

1 - OBRAS COMPLETAS DE C. G. JUNG, Volume VII/1 Psicologia do Inconsciente
http://www.4shared.com/document/YkSQokWD/JUNGpsicologia.html

Prefácio à 1ª edição
Este pequeno trabalho surgiu no momento em que, a pedido do editor, comecei a rever, para ser reeditado, o artigo Neue Bahnen der Psychologie (Novos rumos da Psicologia), publicado em 1912 no Raschersches Jahrbuch (Anuário de Rascher). O trabalho apresentado aqui é, portanto, aquele
mesmo, modificado na sua forma e ampliado. No artigo em questão, limitava-se a mostrar um aspecto essencial da interpretação psicológica introduzida por Freud. Com as numerosas e importantes modificações sofridas nos últimos anos pela psicologia do inconsciente, fui obrigado a alargar consideravelmente o âmbito daquele primeiro artigo. Vários trechos sobre Freud foram reduzidos e substituídos por considerações tiradas da psicologia de Adler.

Prefácio à 2ª edição
Muito me alegra que este pequeno estudo apareça numa segunda edição em tão curto espaço de tempo — e isso apesar do seu conteúdo, que deve ser de difícil compreensão para muitos. Reedito-o inalterado em sua essência, salvo modificações e aperfeiçoamentos insignificantes. Tenho consciência, porém, de que, para colocá-lo mais facilmente ao alcance de todos, será preciso ampliar o debate, devido à dificuldade e à novidade excepcionais do assunto, principalmente no que se refere aos últimos capítulos. Um maior aprofundamento das linhas básicas neles contidas ultrapassaria os limites de uma divulgação mais ou menos popular, de forma que prefiro discutir essas questões com a devida minúcia em outro livro, que se encontra em fase preparatória.2
2. Psychologische Typen, Obras completas, Vol. 6.


Prefácio à 3ªedição 3
3. Na terceira edição, o título foi modificado para Das ünbewusste in normalen und kranken Seelenleben.
Este estudo surgiu durante a Guerra Mundial e deve sua existência principalmente à repercussão psicológica dessa grande conflagração. A guerra terminou e pouco a pouco as coisas se acalmam. Mas os grandes problemas psíquicos levantados pela guerra continuam preocupando a sensibilidade e o espírito dos que pensam e pesquisam. É provável que isso tenha influído na sobrevivência deste pequeno estudo no pós-guerra, permitindo que agora apareça em sua terceira edição. Considerando que se passaram sete anos desde o lançamento da segunda edição, julguei necessário aperfeiçoar o texto e introduzir uma série de modificações, sobretudo nos capítulos referentes aos tipos e ao inconsciente. O capítulo sobre "desenvolvimento dos tipos no processo analítico" foi inteiramente suprimido, já que a questão foi amplamente desenvolvida em meu livro Tipos Psicológicos, que pode servir de referência aos interessados.

Prefácio à 4ª edição
Afora algumas emendas, esta quarta edição é lançada sem alterações. Das múltiplas reações do meu público, deduzi que a, idéia do inconsciente coletivo, a que consagrei um capítulo neste estudo, suscitou um interesse todo especial. Por isso, não quero deixar de pedir a atenção dos leitores para os trabalhos importantes feitos por diversos autores nessa área, publicados nos últimos anos no Eranos-Jahrbuch (Rheinverlag). As informações contidas neste livro não pretendem abranger a totalidade da psicologia analítica. Portanto, muitos pontos são apenas esboçados e outros nem são mencionados. Espero, porém, que continue atendendo aos seus modestos objetivos.
Küsnacht—Zürich, abril de 1936

Prefácio à 5ª edição
Decorreram seis anos desde a última edição inalterada. Por este motivo, pareceu-me oportuno submeter este pequeno estudo a uma profunda revisão, antes desta nova edição. Assim, muitas deficiências puderam ser eliminadas ou melhoradas e o supérfluo foi suprimido. Matérias difíceis e complexas como a psicologia do inconsciente não se prestam apenas a novas descobertas, mas também a equívocos. Trata-se de uma vasta área virgem, em que penetramos a título experimental, onde só é possível atinar com o caminho certo depois de errar por muitos desvios. Apesar do meu esforço de introduzir no texto o maior número possível de novos pontos de vista, não se deve esperar que esgotem todos os principais aspectos do atual conhecimento nessa esfera da psicologia.

2 - OS ARQUÉTIPOS E O INCONSCIENTE COLETIVO
http://www.4shared.com/document/SrK-wi1_/JUNGos_Arquetipos_e_o_Inconsci.html

Prefácio dos editores
A noção de arquétipo e seu correlato, o conceito de inconsciente coletivo, fazem parte das teorias mais conhecidas de CG. JUNG. É possível retraçar suas origens até as publicações mais antigas, como a dissertação médica "Sobre a psicologia e psicopatologia dos fenômenos chamados
ocultos" (1902), em que descreve as fantasias de um jovem médium histérico e procura analisar suas possíveis causas subjetivas. Indicações dos conceitos encontram-se em vários de seus escritos subseqüentes; aos poucos cristalizam-se, a título experimental, as primeiras
definições que são formuladas de modo sempre novo, até surgir um ceme teórico mais estável (no sentido original da palavra "concepção"). A primeira parte do volume IX - dividido em dois tomos - consiste de trabalhos, publicados entre 1933 e 1955, que esboçam e aperfeiçoam os dois conceitos. O volume é introduzido por três ensaios que poderíamos considerar como lançamento teórico da pedra fundamental: "Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo", fruto de uma conferência na reunião Eranos de 1933; "O conceito de inconsciente coletivo", também um texto de conferência (1936), que teve de ser traduzido do inglês; e "Sobre o arquétipo com referência especial ao conceito de anima", publicado pela primeira vez em 1936. Seguem publicações que descrevem arquétipos específicos como o da mãe, do renascimento, da criança divina, de Core (a donzela), depois o motivo do espírito como aparece em incontáveis variantes dos contos populares e a figura do chamado Trickster. Finalmente estuda a relação dos arquétipos com o processo de individuação, uma vez de modo teórico no ensaio "Consciência, inconsciente e individuaçào"(1939), outra vez de modo prático, isto é, aplicado a um processo particular de individuação, como se vê num trabalho analítico de JUNG, baseado numa série impressionante de quadros. Do simbolismo das mandalas tratam o úítimo ensaio e um apêndice de 1955 - Neles, além de rico material da historiadas religiões e do pensamento humano, há figuras da prática psicoterapêutica do autor, portanto produtos espontâneos do inconsciente de contemporâneos para descrição e interpretação.

As ilustrações, que foram publicadas pela primeira vez na edição de "Gestaltungen des Unbewussten" (1954), foram refotografadas com melhor técnica para mais perfeita reprodução no volume das Obras Completas. Além disso foi possível reproduzir parcialmente em cores toda a série de figuras que ilustra o ensaio "A empiria do processo de individuação" e acrescentar mais sete figuras que o próprio autor escolheu dentre o material que teve em mãos para a edição anglo-americana do tomo 1X/1 (1959).Os editores agradecem à senhora Magda Kerényi pelo excelente trabalho de confecção dos índices de pessoas e analítico. Elisabeth Rüf traduziu do inglês o ensaio do capítulo II, até agora inédito em língua alemã.
Outono de 1974

3 - Edição similiar ao primeiro item...
http://www.4shared.com/document/TDoLZYoN/JUNGobraAtualizada.html

Sumário
I. A Psicanálise, 9
II. A Teoria do eros, 18
III. Outro ponto de vista: a vontade de poder, 28
IV. O problema dos tipos de atitude, 38
V. O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo, 58
VI. O método sintético ou construtivo, 72
VII. Os arquétipos do inconsciente coletivo, 81
VIII. A interpretação do inconsciente — noções gerais da terapia, 101
Palavras finais, 106
Apêndice: Novos caminhos da psicologia
1. Os primórdios da psicanálise, 107
2. A teoria sexual, 117
índice de autores e textos, 133

David Hume - Tratado da Natureza Humana

Foi na cidade de Edimburgo no ano de 1711 na Escócia que nasceu David Hume. Por pertencer a aristocracia da época pode freqüentar o que era oferecido pelo melhor ensino da época. Estudos no famoso colégio de Edimburgo “um dos melhores da Escócia”. No período que compreende sua passagem pelo famoso colégio teve como professor de ciências naturais e física um discípulo de Isaac Newton. Para tornar-se homem de letras e filósofo célebre, que era sua grande inspiração Hume rompe seus estudos jurídicos e comerciais, o que provoca problemas com a família. Já estudando Filosofia passa muito tempo na França, notadamente em La Flèche, onde compõe, aos vinte e três anos, seu Tratado da Natureza Humana, editado em Londres, em (1739).

Porém para decepção do autor a obra não obteve o sucesso ou melhor a acolhida desejada, em contrapartida seu trabalho intitulado Ensaios Morais e Políticos (1742) foram muito bem acolhidos pela imprensa da época. Por entender que parte do insucesso de sua primeira obra foi a linguagem empregada Hume passa a esforça-se para simplificar e vulgarizar a filosofia de seu tratado e publica então os Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano (1748), cujo título definitivo surgirá em edição seguinte (1758): Investigação (Inquiry) sobre o Entendimento Humano. Hume viu ainda seu desejo de tornar-se professor universitário recusado, pois muito cristãos não deixaram de ficar inquietos com a última obra citada, embora esta tenha alcançado grande sucesso. David Hume fez uma grande carreira foi diplomata, secretário da Embaixada de Paris e ainda Secretário de Estado em Londres, com o passar do tempo tornou-se um celebre filósofos. Fato marcante e muito comentado foi a visita feita a Hume por Rosseau na Inglaterra no ano de (1766), fato peculiar foi a grande receptividade demonstrada por ambos e a grande indisposição que veio a seguir. Dentre suas obras constam. Uma Investigação sobre os Princípios Morais (1751), uma volumosa História da Inglaterra (1754-1759) e uma História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é que foram publicados, em (1779), seus Diálogos sobre a Religião Natural.

O Ceticismo de Hume

O empirismo de Hume surge então como um ceticismo; seu propósito inicial era encontrar argumentos válidos, plausíveis para explicar psicologicamente a crença no princípio de causalidade é recusar todo valor a esse princípio.

“De fato, não existe, na idéia de causalidade, senão o peso do meu hábito e da minha expectativa. Espero invencivelmente a ebulição da água que coloquei no fogo. Mas essa expectativa não tem fundamento racional. Em suma, poderia ocorrer - sem contradição - que essa água aquecida se transformasse em gelo! "Qualquer coisa, diz Hume, pode produzir qualquer coisa”. Hume afirma ainda que o princípio de causalidade, inteiramente explicado por uma ilusão psicológica, não tem o menor valor de verdade.

Hegel considera o ceticismo de Hume absoluto. Hegel esclarece seu ponto de vista ao esboçar que o ceticismo antigo duvidara “sobretudo dos sentidos para preparar a conversão do espírito ao mundo das verdades eternas, opõe-se um ceticismo moderno - de que Hume seria o corifeu - que nega apenas as afirmações da metafísica e fundamenta, solidamente, as verdades da ciência experimental. Na realidade, o ceticismo de Hume, ao abolir o princípio de causalidade, lança a suspeita em toda ciência experimental”. Hegel prossegue afirmando que Hume tem seus méritos por em todos os princípios do conhecimento descobrir as ilusões da imaginação e do hábito. Segundo Hume, é também a imaginação que identifica o eu com o que ele possui ou, como dizemos, o ser e o ter. Em última instância, eu tenho reputação e mesmo lembranças, idéias e sonhos do mesmo modo que tenho esta roupa ou esta casa. É simplesmente a imaginação, hábil em mascarar a descontinuidade de todas as coisas, que facilmente desliza de um estado psíquico a outro e constrói o mito da personalidade, coleção de haveres heteróclitos que é dado como um ser. Pois, ou eu sou meus "estados" e minhas "qualidades" e não sou eu mesmo, ou então sou eu mesmo e nada mais. David Hume reconhece eu por mais absoluto que seja sua tese “ceticismo” não deixa de possuir um caracter artificial. Podemos terminar concluindo que conforme o empirismo, todas as nossas idéias são provenientes de nossas percepções sensoriais.

O Método de Hume

Sua filosofia coloca, sob o nome de "impressões", aquilo que Bergson mais tarde denominará os dados imediatos da consciência e que os fenomenologistas denominarão a intuição originária ou o vivido. Ao falar de fenomenologia contemporânea, Gaton Berger escrevia: "É preciso ir dos conceitos vazios, pelos quais uma idéia é apenas visada, à intuição direta e concreta da idéia, exatamente como Hume nos ensina a retornar das idéias para as impressões". Para Hume, ir da idéia à impressão consiste em apenas perguntar qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras. Fala-se de substância, de princípios, de causas e efeitos etc.

Que existe verdadeiramente no pensamento quando se discorre sobre isso?
As quais impressões vividas correspondem todas essas palavras?
Aquilo que Hume chama de impressão e que ele caracteriza pelos termos "vividness", "liveliness" é o pensamento atual, vivo, que se precisa redescobrir sob as palavras no empirismo de Hume, diz Limongi, há que ver "antes o ódio ao verbalismo do que o preconceito do sensualismo. p22”.

As principais premissas do empirismo podem ser assim definidas:

A razão não possui patrimônio apriorístico.

A consciência cognoscente não retira seus conteúdos da razão, mas exclusivamente da experiência.

A única fonte do conhecimento humano é a experiência.

BIBLIOGRAFIA
Lalande, André. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Mondin, Battista. Curso de Filosofia. 6 edição, V. 3.São Paulo: Paulus, 1983.
Mondin, Battista. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1980.
Ramos, César Augusto. Revista de Filosofia. Editora da Universidade Federal do Paraná, 2000.
Hume, David. Uma Investigação sobre os Princípios Morais. São Paulo: Martins Fontes,2000.
Limongi, Maria Isabel. Revista de Filosofia. Editora da Universidade Federal do Paraná, 2000.
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. Editora ática. São Paulo,1999.
Volpe, Neusa, Anna Maria. Existencialismo: Uma reflexão antropologia e política a partir de Heidegger e Sartre. Editora Juruá. Curitiba, 2000.
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Limongi, Maria Isabel. Revista de Filosofia UFPR-2000.
Ramos, César Augusto. Revista de Filosofia UFPR 1981.

Palestra sobre David Hume e o problema do nexo de causalidade. Este é o primeiros dez minutos de uma palestra que durou cerca de uma hora. O restante da palestra pode ser ouvida neste endereço: http://journalism.winchester.ac.uk - onde há também extensa anotações e referências. Hume foi o último anúncio maior dos empiristas e ele é rotineiramente descritos como o filósofo mais importante que as ilhas britânicas já produziu. Sua obra é de importância vital para o dia - dia de jornalistas porque lida com o que pode ser beieved e é um alerta contundente contra o problema da inferência falsa - uma comum e grave erro produzido pelos jornalistas.

Nota do blog; No link abaixo encontra-se o arquivo em .PPT - O BRASIL E OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI, autor: Luiz Almeida Marins Filho Ph.D.
University Anthropos
http://www.4shared.com/document/NffjW1xw/ANTHROPOS.html

Immanuel Kant - Dialética Transcendental

ou Emanuel Kant (Königsberg, 22abr1724 — 12fev1804), filósofo alemão, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes.

Depois de um longo período como professor secundário de geografia, começou em 1755 a carreira universitária ensinando Ciências Naturais. Em 1770 foi nomeado professor catedrático da Universidade de Königsberg, cidade da qual nunca saiu, levando uma vida monotonamente pontual e só dedicada aos estudos filosóficos. Realizou numerosos trabalhos sobre ciência, física, matemática, etc. Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o Racionalismo continental (de René Descartes e Gottfried Leibniz, onde impera a forma de raciocínio dedutivo), e a tradição empírica inglesa (de David Hume, John Locke, ou George Berkeley, que valoriza a indução).

Kant é famoso sobretudo pela elaboração do denominado idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar. A filosofia da natureza e da natureza humana de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes do relativismo conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. No entanto, é muito provável que Kant rejeitasse o relativismo nas formas contemporâneas, como por exemplo o Pós-modernismo.

Kant é também conhecido pela filosofia moral e pela proposta, a primeira moderna, de uma teoria da formação do sistema solar, conhecida como a hipótese Kant-Laplace. O filosofo alemão Immanuel Kant define a palavra esclarecimento como a saída do homem de sua menoridade. Segundo esse pensador, o homem é responsável por sua saída da menoridade. Kant define essa menoridade como a incapacidade do homem de fazer uso do seu próprio entendimento. Segundo Kant, a permanência do homem na menoridade se deve ao fato de ele não ousar pensar. A covardia e a preguiça são as causas que levam os homens a permanecerem na menoridade. Um outro motivo é o comodismo.

É bastante cômodo permanecer na área de conforto. É cômodo que existam pessoas e objetos que pensem e façam tudo e tomem decisões em nosso lugar. É mais fácil que alguém o faça, do que fazer determinado esforço, pois já existem outros que podem fazer por mim. Os homens quando permanecem na menoridade, são incapazes de fazer uso das próprias pernas,são incapazes de tomar suas próprias decisões e fazer suas próprias escolhas. Em seu texto O que é ilustração, Kant sintetiza seu otimismo iluminista em relação à possibilidade de o homem seguir por sua própria razão, sem deixar enganar pelas crenças, tradições e opiniões alheias. Nele, descreve o processo de ilustração como sendo "a saída do homem de sua menoridade", ou seja, um momento em que o ser humano, como uma criança que cresce e amadurece, se torna consciente da força e inteligência para fundamentar a sua própria maneira de agir, sem a doutrina ou tutela de outrem.

Kant afirma que é difícil para o homem sozinho livrar-se dessa menoridade, pois ela se apossou dele como uma segunda natureza. Aquele que tentar sozinho terá inúmeros impedimentos, pois seus tutores sempre tentarão impedir que ele experimente tal liberdade. Para Kant, são poucos aqueles que conseguem pelo exercício do próprio espírito libertar-se da menoridade.

As questões de partida do Kantismo são o problema do conhecimento, e a ciência, tal como existe. A ciência se arranja de juízos que podem ser analíticos e sintéticos. Nos primeiros (o quadrado tem quatro lados e quatro ângulos internos), fundados no princípio de identidade, o predicado aponta um atributo contido no sujeito. Tais juízos independem da experiência, são universais e necessários. Os sintéticos, a posteriori resultam da experiência e sobrepõem ao sujeito no predicado um atributo que nele não se acha previamente contido (o calor dilata os corpos ), sendo, por isso, privados e incertos.

Uma indagação eminente que o levara à sintetização do pensar: Que juízos constituem a ciência físico matemática? Caso fossem analíticos, a ciência sempre diria o mesmo (e não é assim), e, se fossem sintéticos um hábito sem fundamento (o calor dilata os corpos porque costuma dilatá-los).

Os juízos da ciência devem ser, ao mesmo tempo, a priori, quer dizer, universais e necessários, e sintéticos objetivos, fundados na experiência. Trata-se pois, de saber como são possíveis os juízos sintéticos a priori na matemática e na física, ("Estética transcendental" e "Analítica transcendental"), e se são possíveis na metafísica ("Dialética transcendental", partes da Crítica da razão pura). Para os juízos sintéticos a priori são admissíveis na matemática porque essa ciência se fundamenta no espaço e no tempo, formas a priori da sensibilidade, intuições puras e não conceitos de coisas como objetos. O espaço é a priori, não deriva da experiência, mas é sua condição de possibilidade. Podemos pensar o espaço sem coisas, mas não coisa sem espaço. O espaço é o objeto de intuição e não conceito, pois não podemos ter intuição do objeto de um conceito (pedra, carro, cavalo, etc.), gênero ou espécie. Ora, o espaço não é nem uma coisa nem outra, e só há um espaço (o nada, referindo ao espaço).

Na apresentação "transcendental" do espaço, Kant determina as condições subjetivas ou transcendentais da objetividade. Se o conhecimento é relação, ou relacionamento (do sujeito com o objeto), não, pode conhecer as coisas "em si", mas "para nós". A geometria pura, quando aplicada, coincide totalmente com a experiência, porque o espaço é a forma a priori da sensibilidade externa. O tempo é, também, a priori. Podemos concebê-lo sem acontecimentos, internos ou externos, mas não podemos conceber os acontecimentos fora do tempo. Objeto de intuição, não pode ser conceito. Forma vazia, intuição pura, torna possíveis por exemplo os juízos sintéticos a priori na aritmética, cujas operações (soma, subtração, etc.), ocorrendo sucessivamente, o pressupõem. O tempo é, pois, a forma a priori da sensibilidade interna e externa. Esse privilégio explica a compenetração da geometria e da aritmética. A geometria analítica (Descartes) permite reduzir as figuras a equações e vice-versa. O cálculo infinitesimal (Leibniz) arremata essa compenetração definindo a lei de desenvolvimento de um ponto em qualquer direção do espaço. A matemática é pois, um conjunto de leis a priori, que coincidem com a experiência e a tornam cognoscível.

As condições de possibilidade do conhecimento sensível são, portanto, as formas a priori da sensibilidade. Não existe a "coisa em si". Se existisse não se poderia a conhecer enquanto tal, e nada se poderia dizer a seu respeito. Só é possível conhecer coisas extensas no espaço e sucessivas no tempo, enquanto se manifestam, ou aparecem, ou seja, "fenômenos. Na "analítica transcendental", Kant analisa a possibilidade dos juízos sintéticos a priori na física. Compreendemos que a natureza é regida por leis matemáticas que ordenam com rigor o comportamento das coisas (o que permite ciências como engenharia, etc., serem possíveis o determinismo com certa regularidade). Não há como saber das coisas com apenas percepções sensíveis, impressões. Há um conhecimento a priori da natureza. A função principal dos juízos da natureza. Ora, a função principal dos juízos é pôr, colocar a realidade e, em seguida, determiná-la. As diversas formas do juízo deverão, portanto, conter as diversas formas da realidade.

Essa formas estão estudadas desde Aristóteles, que as classifica de acordo com a quantidade, a qualidade, a relação e a modalidade. Na "Dedução transcendental" das categorias, Kant volta a classificação aristotélica, dando-lhe novo sentido. Assim, à quantidade, correspondem a unidade, a pluralidade e a totalidade; à qualidade a essência, a negação e a limitação; a relação a substância, a causalidade e a ação recíproca; à modalidade, a possibilidade, a existência e a necessidade. Tais categorias são as condições de possibilidade dos juízos sintéticos a priori em física. As condições do conhecimento são, enfim, como se acabe de ver, as condições prévias da objetividade. A ciência da natureza postula a existência de objetos, sua consistência e as relações de causa e efeito. Se as categorias universais, particulares e contingentes, devem proceder de nós mesmos, de nosso entendimento. Em tal descoberta consiste a "inversão copernicana", realizada por Kant. Não é o objeto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o objeto. As categorias são conceitos, todavia, puros, a priori, anteriores à experiência e que, por isso, a tornam possível. Em suma, o objeto só se torna cognoscível na medida em que o sujeito que determina o objeto. Em suma, o objeto só se torna cognoscível na medida em que o sujeito cognoscente o reveste das condições de cognoscibilidade.

Na "dialética transcendental", finalmente Kant examina a possibilidade dos juízos sintéticos a priori na metafísica. A "coisa em si" (alma, Deus, essência do cosmos, etc.), não nos é dada em experiência alguma. Ora, como chega a razão a formar esses objetos? Sintetizando além da experiência, fazendo a síntese das sínteses, porque aspira ao infinito, ao incondicionado, ao absoluto. Nas célebres, "antinomias", Kant mostra que a razão pura demonstra, "indiferentemente", a finitude e a infinitude do universo, a liberdade e o determinismo, a existência e a inexistência de Deus. Ultrapassando os limites da experiência, aplica arbitrariamente as categorias e pretende conhecer o incognoscível. A metafísica é impossível como ciência, pois não se pode chegar mais, além disso.

Nota do blog: No link abaixo a programação do II SIGE 2010 (Agosto) com a temática; Políticas públicas e Gestão Educacional.
http://www.4shared.com/document/gBh-7gfP/II_SIGE_2010.html

Saberes docentes: da disciplinaridade à transdisciplinaridade, mediadas pela ação interdisciplinar

Ana Maria dos Reis Taino (GEPI- PUC/SP e Faculdade Maria Augusta) anam.reis@uol.com.br

Resumo

O objetivo desse trabalho é o de apresentar uma releitura referente ao saber docente desde os saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das disciplinas, dos currículos e os da experiência (Tardif et al.1991:223). A interdisciplinaridade (Fazenda) fundamenta epistemologicamente a investigação a partir do diálogo de suas categorias com os diferentes saberes e ao longo do percurso do reconhecimento proposto por Ricoeur (2004): reconhecimento como identificação, reconhecimento de si mesmo e reconhecimento mútuo. Metodologicamente o movimento ascendente de busca e depuração do sentido abordados por Pineau (200) aliado às contribuições da memória destacadas por Ricoeur (2004) na rememoração de lembranças, no reconhecimento de imagens e na reflexão sobre a memória que favorecerão essa leitura que propõe um avanço na abordagem de formação docente.

Palavras chave: Saberes docentes, Interdisciplinaridade, Reconhecimento, Memória e Transdisciplinaridade.

A ação de formadora de professores sempre fez parte da minha trajetória profissional e considerada como elemento marcante no meu contínuo desenvolvimento. Mas há algum tempo a atitude de pesquisadora vem me desafiando e me impulsionando para novas práticas formadoras.
A questão do conhecimento do professor há mais de duas décadas vem despertando um grande interesse na comunidade científica internacional e dominando a literatura produzida nas ciências da educação.

As pesquisas brasileiras orientadas pela literatura internacional têm possibilitado o avanço da reflexão sobre os saberes docentes contribuindo para a valorização dos mesmos e facilitado a construção de um referencial específico de pesquisa. Os professores são considerados como profissionais que adquirem e desenvolvem conhecimentos a partir da prática e no confronto com as condições de trabalho.

A forma como se constituiu e evoluiu esse novo campo de estudos na formação de professores, deixaram clara a diversidade teórica e metodológica existente. Essas questões dos saberes docentes têm sido discutidas no campo da formação de professores e é também objeto de estudo tanto no campo da didática, como no campo do currículo.

Mas a formação valoriza ainda uma abordagem disciplinar no tratamento dos diferentes saberes na proposição de cursos voltados tanta na formação inicial quanto na formação continuada de conhecimentos estanques referentes à disciplina, ao currículo e à formação pedagógica.

Por outro lado uma educação, para que possa ser considerada formadora de pessoas, deve contribuir para o desenvolvimento total da mesma: espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal. É nesse sentido que desenvolvemos nossas considerações sobre os saberes docentes.

Trabalhar com pessoas é trabalhar com sentimentos, paradoxos, conflitos, ambigüidades e antagonismos, portanto, com a diversidade e a multiplicidade dos aspectos dessa totalidade humana, produto de um saber local e universal. Essas categorias universais inclusive a mudança são próprias do ser humano e fazem parte do seu desenvolvimento.

Os aspectos humanos importantes na formação dessa totalidade humana do professor passa pelas questões que são próprias da natureza humana e dizem respeito à interioridade, à subjetividade de cada ser humano e poderão contribuir na formação da dimensão do saber ser.

Mas essa cultura de valorização da subjetividade e dos processos de autoconhecimento encontra na cultura tradicional da escola fortes resistências e preocupações com uma possível despolitização da ação pedagógica.

As discussões teóricas a respeito do papel humanista do conhecimento e da ciência, na década de 70, direcionaram as primeiras discussões sobre interdisciplinaridade, que elegeu a totalidade como categoria de reflexão, tema por excelência de Georges Gusdorf, precursor das discussões sobre interdisciplinaridade, conforme Fazenda (1994:19).

Conhece-te a ti mesmo”, foi o símbolo encontrado em Sócrates por Fazenda (1994:19), que coloca que conhecer a si mesmo é conhecer em totalidade, interdisciplinarmente. Complementa ainda, que em Sócrates, a totalidade só é possível pela busca da interioridade. Quanto mais se interioriza, mais certeza vai se adquirindo da ignorância, da limitação, da provisoriedade (Idem: 15), que ao gerar dúvidas, conduz ao conhecimento de si mesmo e ao conhecimento da totalidade.

Assim ao fazer uma reflexão a partir do conhecimento interior em busca do conhecimento da totalidade inicio pela busca do sentido da palavra “conhecimento”, que em latim é oriunda de cognição e significa literalmente co- nascer, isto é, nascer e ser. Portanto ela nos convida a irmos ao encontro do nosso próprio nascimento, ou seja, da origem do nosso ser, implica assim nascer de novo, no nascer também para o espírito, para a consciência profunda do sentido da vida (Espírito Santo, In Fazenda :2001:205).

O conhecer entendido nessa dimensão do “co- nascer”, torna- se sinônimo de “conhecer a si mesmo” num ato de encontro com as raízes comuns que nos ligam aos nossos semelhantes e ao ambiente em que vivemos, objetos da nossa busca de conhecimento. Essa relação entre autoconhecimento e cultura é fundamental no sentido de que conhecer no outro é reconhecer em si. É também um ato de se redimensionar pessoalmente com e a partir deste co- nascimento. Cultura e autoconhecimento permitirão que cheguemos à condição de seres humanos, à consciência de ser. Portanto a idéia de autoconhecimento está presente nas diversas tradições culturais da humanidade.

Os primeiros pensadores já alertavam para essa relação entre conhecer e reconhecer, pois nem sempre reconhecemos que o que reconhecemos no outro só pode ser reconhecido por existir igualmente em nós. Isso ocorre conosco por termos a dificuldade em reconhecer em nós mesmos o que nos parece similar a um "erro".

Nos tempos modernos, os rumos tomados por nossa tradição cultural valorizam a busca do conhecimento científico voltado aos aspectos externos da vida e do mundo desqualificando o conhecimento subjetivo, isto é, o autoconhecimento. Esse fato nos distanciou de nossa interioridade tornando-nos desconhecidos a nós mesmos e prejudicando- nos na nossa relação com o outro.

Nesta era freudiana na qual vivemos, a busca de autoconhecimento, que gerou a busca de cultura, tornou-se a busca de cultura que geraria mais autoconhecimento. Autoconhecimento e cultura são os dois pólos essenciais da evolução do homem, já que hoje em dia nenhum dos dois sobreviverá sem o outro. A conseqüência disso é que assim como consideramos a cultura como o "meio ambiente" ou o que faz viver o autoconhecimento teremos que considerar que o autoconhecimento é igualmente o sistema ecológico da cultura e que cada expressão cultural é em primeiríssimo lugar uma expressão, uma revelação de si.

Os valores como sensibilidade, intuição, espiritualidade foram deixados de lado e considerados menores, gerando seres artificiais e desencantados, portanto desvalorizados em seu ser e se contrapondo ao objetivo do autoconhecimento que é a transformação interior, o despertar da consciência e a autorealização íntima do ser.

Nesse sentido, Ivani Fazenda vem abrindo caminhos, ao propor um olhar rigoroso e uma atitude interdisciplinar para conhecer mais e melhor, dialogar entre certeza e incerteza, aceitando com alegria o desafio perante o novo e a recuperação da magia das práticas pedagógicas. Esta perspectiva interdisciplinar exige uma atitude inovadora, no sentido de garantir um pensamento globalizante, integrado e coerente (Taino, In: Fazenda, 2001: 101).

Amplia- se assim a visão geral de mundo, que de acordo com Böhn (1999: 11) “é crucial para a ordem global da própria mente humana. Se o homem pensar a totalidade como constituída de fragmentos independentes, então é assim que sua mente tenderá a operar. Mas, se ele consegue incluir tudo, coerente e harmonicamente, num todo global indiviso, ininterrupto e ilimitado (pois todo limite é uma divisão ou ruptura), então sua mente tenderá a mover- se de modo semelhante, e disto fluirá uma ação ordenada dentro do todo”.

A capacidade de trabalhar com esta nova complexidade, com as incertezas e dúvidas, aponta para o exercício da ambigüidade e para uma formação complexa. Angústias, equívocos e antagonismos são percebidos como sinais que estimularão através da reflexão, do diálogo e da troca intersubjetiva, a percepção da totalidade, ainda que inacabada e provisória. Essa possibilidade de atribuição de dois ou mais sentidos às diferentes situações, enriquece a prática, pois permite o surgimento de idéias inéditas e diferentes, numa valorização dos aspectos humanos (Taino, In: Fazenda, 2001:101).

Assim despojando- se de suas inseguranças, aceitando- se como ser humano inconcluso e imperfeito, mas capaz de autocrítica, de aceitação de seus limites e de superação de uma prática pedagógica restrita, permitirá a construção de um novo modelo de escola, mais preocupado com a diversidade cultural, religiosa e racial, com as diferenças individuais e com a ampliação das potencialidades humanas para outros campos do conhecimento que não apenas o racional, como nos ensina Fazenda (1994:28).

A sociedade precisa de uma diversidade de talentos, de personalidades autônomas e criativas onde os aspectos humanos façam parte dos processos formativos.

Entretanto para Fazenda (2001:20) “os projetos de formação de professores têm sido construídos apenas a partir de paradigmas formais e externos ao professor, onde o dever ser soma- se ao como fazer. Pouquíssimas vezes as proposições sobre formação de educadores que temos analisado preocupam- se com o lugar onde os sujeitos encontram- se situados, suas dificuldades na busca do significado interior de suas aprendizagens ou o que aprendem com seus erros”.

Reafirmando a diversidade teórica e metodológica trago para a discussão os pressupostos da interdisciplinaridade onde as ordenações: científica e social, são fundamentais e complementares na formação interdisciplinar de professores. São proposições apontadas por Fourez (apud Fazenda, 2001 e 2002) e ampliada por Lenoir e Fazenda (2001), com a inclusão e valorização da ordenação interdisciplinar, considerada como uma forma especificamente brasileira de formação de professores.

Em minha dissertação de mestrado (1) aponto o saber do professor como um conhecimento profissional complexo, constituído pelas dimensões teórico- prática com destaque para as diferentes categorias interativas de conhecimento (conhecimento da matéria, conhecimento psicopedagógico, conhecimento curricular e conhecimento empírico); para o desenvolvimento de competências profissionais interdisciplinares e para a importância das crenças dos professores na definição de sua ação docente.

Com a ampliação do olhar a partir da interdisciplinaridade, percebo essa categorização similar à ordenação científica que valoriza o saber/saber na sua disciplinaridade, especificidade e profundidade, como fundamental na construção de saberes interdisciplinares, como valorizado na cultura francófona.

Embora seja fundamental o desenvolvimento desses conhecimentos científicos, destaco também a importância da capacidade de mobilização dos mesmos, numa prática de saber/fazer, de acordo com as exigências sociais, políticas e econômicas, no que considero como desenvolvimento das competências profissionais ou como a ordenação social relatada por Fazenda (2001, 2002) e presente marcadamente na cultura de língua inglesa.

Mas aqui no Brasil, conforme Lenoir (2001), vem se constituindo a cultura do saber/ser, numa perspectiva interacional, denominada por ordenação interdisciplinar e desenvolvida por Fazenda a partir dos seus estudos sobre a teoria interdisciplinar. Essa preocupação com as relações intersubjetivas e com os aspectos humanos impulsionam minha prática investigativa.

A interdisciplinaridade, ao valorizar a atitude que busca a erudição em profundidade, ousa e contribui na criação e desenvolvimento de novos conceitos, práticas e abordagens investigativas e formativas. Essas práticas possibilitam o desvelamento de nosso modo de ser, pensar e agir por meio de um trabalho que valorize o professor, como sujeito portador de histórias e experiências, que constrói o mundo em relação com outros sujeitos e com o contexto no qual interage.

Conhecer, ensinar, aprender, são atividades humanas básicas, mobilizadas no processo educacional, isto é, numa trama complexa de relacionamentos consigo próprio, com outros seres humanos e com o próprio ambiente.
Assim, no exercício da docência e nas atividades de educação continuada, vivemos situações ambíguas e incertas sobre a aprendizagem, que exigem momentos de espera vigiada como nos ensina Fazenda e de auto- organização como propõe Moraes. Propiciam ainda momentos de reflexão, na busca de sentido e significado para a prática formadora conforme aborda Pineau (2000).

Os processos de ensinar - aprender mais complexos e mais esquecidos nos currículos de formação de professores se referem à própria condição de ser e de se constituir como seres humanos, pois nascemos ignorantes das artes, dos saberes e dos significados da cultura sobre essa curiosidade própria da condição humana que é aprender a ser (Arroyo: 2000:55).

Ricoeur (2004:13) enfatiza esse percurso, como percurso do reconhecimento, como um movimento de sentido constituído pelas etapas de identificação, de reconhecimento de si próprio e do reconhecimento mútuo. Percurso que exige espera, diálogo, a rememoração das lembranças, no reconhecimento de imagens e na reflexão sobre a memória, pois reconhecer é encontrar nos objetos e/ou nas pessoas os traços de uma consciência que os tornam familiares a nós.

Como identificação, primeira etapa desse percurso, busca identificar a permanência de uma identidade, isto é, aponta o reconhecimento entendido como identificação, como distinção, pois para Ricoeur, apoiado em Descartes identificação é inseparável de distinção. Já com apoio de Kant discute a influência do tempo nas representações, que aparece como ameaça, pois pode favorecer o irreconhecimento de pessoas, fatos e situações.
Mas na continuidade dessa busca de sentido Ricoeur (2004: 111) propõe o reconhecimento de si mesmo a partir do entendimento de identidade como capacidade, talento e competência, pois o que define a identidade é aquilo que a pessoa é capaz de realizar.

A reciprocidade marca a outra etapa proposta nesse itinerário filosófico de Ricoeur: o reconhecimento mútuo, pois quero ser reconhecido pelo outro que quer o mesmo de minha parte.

A capacidade é vista principalmente como prática social e capacidade de reconhecer várias identidades multiculturais com suas lutas para o reconhecimento do amor, reconhecimento de um plano jurídico e de luta para a estima. Mas o reconhecimento nem sempre é resultado de conflitos, pois valoriza o reconhecimento apaziguado por meio da dádiva, da solidariedade e da reciprocidade como também propõe Fazenda na criação de espaços educativos identificados como “Ilhas de Paz”.

O homem desenvolveu entre outras capacidades a capacidade de buscar e de perceber os próprios sentimentos, dominando- os quando negativos e desenvolvendo- os quando positivos favorecendo assim a constituição do equilíbrio emocional. Essa capacidade de autopercepção, ou seja de inteligência emocional, permite a percepção dos sentimentos dos outros facilitando nossos relacionamentos. Para tanto é fundamental que tenhamos bem desenvolvida nossa inteligência intrapessoal, isto é, as habilidades pertinentes a nossa própria pessoa, a saber: autoconhecimento, autodomínio e automotivação. Quando a temos bem desenvolvida e harmonizada podemos trabalhar a inteligência interpessoal que refere-se às habilidades de relacionamento com outras pessoas. Ë pois uma conseqüência natural da outra. Podemos assim nos solidarizarmos e compreendermos os sentirmentos dos outros, lidando bem com as emoções nos relacionamentos e utilizando as habilidades de liderança, solucionando os conflitos e estabelecendo vínculos de cooperação e trabalho em equipe.

Como seres incompletos e inconclusos vivemos em contínua transformação, num processo permanente, muitas vezes inconsciente, de construção e autoconstrução. Entretanto a consciência da incompletude do mundo e de si mesmo, propicia ao ser humano o desenvolvimento contínuo do estado de busca e curiosidade, enfim de aprender a aprender como coloca Moraes a partir de Freire (2003).

Os desafios encontrados nessa constituição da identidade são considerados por Moraes (1997:211) básicos para a integração do plano individual com o ecossociocultural, que esclarece as relações do indivíduo consigo mesmo, com a sociedade e a natureza, em busca de sua própria transcendência.
Nossa capacidade de auto- organização é assim considerada fundamental nessa teia de aprendizagem e pressupõe autonomia, interatividade e interdependência com o meio e com nossas emoções e sentimentos.

A influência da interdisciplinaridade tem sido marcante nesse processo de construção de um novo caminho de aprendizagem, pois a partir de seus pressupostos aprendemos a incluir o exercício da ambigüidade, da flexibilidade, da amplitude e sensibilidade do olhar e da articulação dos paradoxos como tempos e espaços significativos de reflexão e aprendizagem.
A formação teve entrada tardia na reflexão educativa substituindo progressivamente o ensino, a instrução e a educação. Deve ser vista de forma ampla, transcendendo o processo de formação inicial e continuada, como uma ação ou efeito de formar, de constituir caráter, de desenvolver- se numa busca permanente de completude, de sentido e significação e “função da evolução humana” como coloca Honoré (1997, apud Pineau).

Surge assim a formação como necessidade de desenvolvimento de uma abordagem interior da educação, entendida a partir de uma perspectiva antropológica, como processo vital e permanente de morfogênese e metamorfose emergindo das interações entre a pessoa e o meio ambiente físico e social.

Entendemos como Galvani (2002: 96) que essa formação é paradoxal e se alimenta de suas dependências e pressupõe um movimento de tomada de consciência reflexiva e de retroação da pessoa sobre as influências físicas e sociais recebidas e conduzido pelo sujeito através dos seguintes processos:

Heteroformação- ocorre a partir da ação dos outros, nos ambientes culturais e sociais, inclusive nas ações de formação inicial e continuada;
Ecoformação- destaca a formação através dos espaços a partir da ação do meio ambiente físico, que produz uma forte influência sobre as culturas humanas e sobre o imaginário pessoal que organiza o sentido dado à experiência;

Autoformação- surge como a terceira força de formação, a do eu, numa abordagem interior que resulta do conjunto da hetero e da ecoformação. Inicia- se com a oposição do sujeito aos determinismos externos avançando para a cooperação entre o sujeito e o meio ambiente.
Considera- se assim que a autoformação da pessoa é entendida pois como a construção de um sistema de relações pessoais com os diferentes espaços criando uma unidade funcional indivíduo- meio ambiente. Na maioria dos espaços de formação continuada privilegia- se ainda a heteroformação ao passo que a autoformação ainda está em fase inicial de discussão e contestada por muitos.

Fica claro portanto que “a atitude de contextualizar e globalizar é um qualidade fundamental do espírito humano que o ensino parcelado atrofia e que, ao contrário disso, deve ser sempre desenvolvida” (Morin, 1999:13).

Assim o processo de formação precisa incluir a reforma do pensamento por um “pensamento complexo capaz de ligar, contextualizar e globalizar” (idem), favorecendo a transdisciplinaridade.

Destaco finalmente que a religação entendida como processo de aprendizagem, isto é, “na possibilidade de regenerar a cultura pela religação de duas culturas separadas, a da ciência e a das humanidades”, proposta por Morin significa um avanço na abordagem de formação docente.

Notas
1- Das representações dos professores às competências profissionais: saberes docente e formação.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre: imagens e auto- imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
CETRANS, Coordenação Executiva. Educação e Transdisciplinaridade, II. São Paulo:TRIOM, 2002.
ESPÍRITO SANTO, R. C. do. Autoconhecimento. In: FAZENDA, I. (org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade, São Paulo: Cortez, 2001.
FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Campinas, SP: Papirus, 1994.
FAZENDA, Ivani (org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo Cortez: 2001.
GALVANI, Pascal. A autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural. In: SOMMERMAN, A., MELLO, M. F. de e BARROS, V.M. de. (orgs.). Educação e transdisciplinaridade, II. São Paulo: TRIOM, 2002.
LENOIR, Yves; REY, Bernard; FAZENDA, Ivani. Les fondements de l'interdisciplinarité dans la formation à l'enseignement. Éditions DU CRP- Université de Sherbrooke, 2001.
MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas, SP: Papirus, 1997.
MORAES, Maria Cândida. Educar na biologia do amor e da solidariedade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
MORIN, Edgar. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EDUFRN, 1999.
PINEAU, Gaston. A autoformação no decurso da vida. Disponível em: http://www. cetrans.futuro.usp.br/pineau.htm. Acesso em 30/10/03.
PINEAU, Gaston. O sentido do sentido. In: NICOLESCU, Basarab. Educação e Transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO, 2000.
RICOEUR, Paul. Parcours de la reconnaissance: trois études. France:Editions Stock, 2004.
TAINO, Ana Maria dos Reis. Das representações dos professores às competências profissionais: saberes docentes e formação. Dissertação de Mestrado: PUC-SP, 2002.
TAINO, Ana Maria dos Reis. Totalidade. In: FAZENDA, I. (org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001.
TARDIF, M., LESSARD, C. & LAHAYE, L. Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação. Brasil, Vol.1, no.4. p.215-233, 1991.

Nota do blog: Para "matar" a saudade da cartilha de alfabetização de nossa infância, Link; http://www.4shared.com/document/9ZRnp8i-/Cartilhas.html

21 de maio de 2010, Jodi Forlizzi, Professor Associado de Desenho e Interação Humano-Computador da Carnegie Mellon University, discute duas idéias que ela aprendeu com design trazendo à pesquisa Interação Humano-Computador e desenvolvimento. Professor Forlizzi usa exemplos do seu trabalho e do trabalho de seu laboratório para mostrar os benefícios desses insights.

Notas sobre a experiência e o saber de experiência - Jorge Larrosa Bondía

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo. Franz Kafka

Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par ciência/técnica remete a uma perspectiva positivista e reificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a uma perspectiva política e crítica. De fato, somente nesta última perspectiva tem sentido a palavra "reflexão" e expressões como "reflexão crítica", "reflexão sobre a prática ou na prática", "reflexão emancipadora", etc. Se na primeira alternativa as pessoas que trabalham em educação são concebidas como sujeitos técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na segunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem como sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias reflexivas, se comprometem, com maior ou menor êxito, com práticas educativas concebidas na maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo isso é suficientemente conhecido, posto que nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado separado entre os chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários da educação como ciência aplicada e os partidários da educação como praxis política, e não vou retomar a discussão.

O que vou lhes propor aqui é que exploremos juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par experiência e sentido. O que vou fazer a seguir é sugerir um certo significado para estas duas palavras em distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de compartilhá-las.

E isto a partir da convicção de que as palavras produzem sentido, criam realidade e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente "raciocinar" ou "calcular" ou "argumentar", como nos têm sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que se nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon lógon échon. A tradução desta expressão, porém, é muito mais "vivente dotado de palavra" do que "animal dotado de razão" ou "animal racional". Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos por ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo o humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras, etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos, e de como vemos ou sentimos o que nomeamos.

Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada, como praxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido não é somente uma questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras, são lutas em que se jogo algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.

1. Começarei com a palavra "experiência". Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, "o que nos passa". Em português se diria que a experiência é "o que nos acontece"; em francês a experiência seria "ce que nos arrive"; em italiano "quello che nos succede" ou "quello che nos accade"; em inglês seria "that what is happening to us"; em alemão seria "was mir passiert".

A experiência é o que nos passa [1], o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça . Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma anti-experiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de "sabedoria", mas no sentido de "estar informado") o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.

Além disso, seguramente todos já ouvimos que vivemos numa "sociedade de informação". E já nos demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como sinônima de "sociedade do conhecimento" ou até mesmo de "sociedade da aprendizagem". Não deixa de ser curiosa a troca, o intercambialidade, entre os termos "informação", "conhecimento" e "aprendizagem". Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação. E não deixa de ser interessante também que as velhas metáforas organicistas do social, que tantos jogos permitiram aos totalitarismos do século passado, estejam sendo substituídas por metáforas cognitivistas, seguramente também totalitárias, ainda que revestidas agora de um look liberal e democrático. Independentemente de que seja urgente problematizar esse discurso que se está instalando sem crítica, a cada dia mais profundamente, e que pensa a sociedade como um mecanismo de processamento de informação, o que eu quero apontar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade onde a experiência é impossível.

Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião como a informação se converteu em um imperativo. Nós, em nossa arrogância, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem que ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça.

Benjamin dizia que o periodismo é o grande dispositivo moderno para a destruição generalizada da experiência. O periodismo destrói a experiência, sobre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra coisa que a aliança perversa entre informação e opinião. O periodismo é a fabricação da informação e a fabricação da opinião. E quando a informação e a opinião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa que o suporte informado da opinião individual, e o sujeito coletivo, esse que teria que fazer a história segundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e da opinião, um sujeito incapaz de experiência. E o fato de o periodismo destruir a experiência é algo mais profundo e mais geral do que aquilo que derivaria do efeito dos meios de comunicação de massas sobre a conformação de nossas consciências.

O par informação/opinião é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de "aprendizagem significativa". Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, há que opinar, há que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão "significativa" da assim chamada "aprendizagem significativa". A informação seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação subjetiva, é uma reação que se tornou para nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opinamos. Este "opinar" se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para responder como Deus manda às perguntas dos professores que, cada vez mais, se parecem a comprovações de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna impossível a experiência.

Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente de pressa, cada vez mais de pressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de shock, do choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso a velocidades e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, é também inimiga mortal da experiência.

Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada vez mais convencido de que os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já disse, pelo funcionamento perverso e generalizado do par informação-opinião, mas também pela velocidade. Cada vez estamos mais tempo na escola (e a Universidade e os cursos de formação do professorado são parte da escola) mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre que aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem que seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos sempre acelerados e nada nos acontece.

Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Este ponto me parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quando se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência de trabalho. Tenho ouvido falar de uma certa tendência aparentemente progressista no campo educacional que, depois de criticar o modo como nossa sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende implantar e homologar formas de contagem de créditos para a experiência e para o saber de experiência adquirido no trabalho. Por isso estou muito interessado em distinguir entre experiência e trabalho e, além disso, em criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer conversão da experiência em créditos, em mercadorias, em valor de troca. Minha tese não é somente porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas, com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal da experiência.

O sujeito modernos, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalho, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo "natural" quanto o mundo "social" e "humano", tanto a "natureza externa" quanto "a natureza interna", segundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito moderno é animado por uma portentosa mescla de otimismo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como um obstáculo a sua onipotência. O sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo, modificar algo, regular algo. Independentemente de este desejo estar motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua existência. Nós não só somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e super-estimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiper-ativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

2. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é o que nos passa, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, onde a experiência é "ce que nous arrive", o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, onde a experiência soa como "aquilo que nos acontece, nos sucede", ou "happen to us", o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.

Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial.

O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a o-posição (nossa maneira de opormos), nem a im-posição (nossa maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa maneira de propormos), mas a ex-posição, nossa maneira de ex-pormos, como tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.

3. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar [experimentar]. A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados desta raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através; perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele a prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro [2], de exílio, de estranho [3] e também o ex de existência. A experiência á a passagem da existência, a passage, de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.

4. Martin Heidegger uma definição de experiência em que soam muito bem essa exposição, essa receptividade, essa abertura, assim como essas duas dimensões de travessia e perigo que acabamos de destacar: "...fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em 'fazer' uma experiência isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, 'fazer' significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, a medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo".

O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Por outro lado, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade.

Nas duas últimas linhas do parágrafo, ".... Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo" pode ler-se outro componente fundamental da experiência, sua capacidade de formação ou de transformação. É experiência aquilo que 'nos passa', ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.

5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-se a várias coisas.

Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera passividade. Como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes, inclusive, algo público, ou político, ou social, como um testemunho público de algo, ou uma prova pública de algo, ou um martírio público em nome de algo, ainda que esse "público" se dê na mais estrita solidão, no mais completo anonimato.

"Paixão" pode referir-se também a uma certa heteronomia, ou a uma certa responsabilidade em relação com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmente, de outra liberdade e de outra autonomia diferente daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A paixão funda sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigado, inclusa, fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar.

E "paixão" pode referir-se, por fim, a uma experiência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um desejo que permanece desejo e que quer permanecer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado.

Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é, precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por quem está apaixonado. Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado encontra sua felicidade ou ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe proporciona.

O que o sujeito ama é precisamente sua própria paixão. Mais ainda: o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de possibilidade de todo renascimento.

6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o que poderia ser a experiência e o sujeito da experiência. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia e do perigo, da abertura e da ex-posição, da receptividade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao saber da experiência. Definir o sujeito da experiência como sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.
A experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em forma de praxis. O que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de uma praxis distinta daquela da técnica e do trabalho.

O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos. É importante, porém, ter presente que, do ponto de vista da experiência, nem "conhecimento" nem "vida" significam o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que somente pode crescer; algo universal e objetivo, de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente com o útil no seu sentido mais estreitamente pragmático, num sentido estritamente instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente, dinheiro, tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro. Recordem-se as teorias do capital humano ou essas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade da informação.

Por outro lado, a "vida" se reduz a sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades (geralmente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Pense-se no que significa para nós "qualidade de vida" ou "nível de vida", nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute.

Nestas condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa que a apropriação utilitária, a utilidade disto que se nos apresenta como "conhecimento" para as necessidades disso que se nos dá como "vida" e que são completamente indistintas das necessidades do Capital e do Estado.

Para entender o que seja a experiência, é necessário remontar aos tempos anteriores à ciência moderna (com sua específica definição do conhecimento como conhecimento objetivo) e à sociedade capitalista (onde se constituiu a definição moderna de vida como vida burguesa). Durante séculos o saber humano havia sido entendido como um páthei máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Esse é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular. Ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira irrepetível. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.

A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida, Ter uma vida própria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, algo cada vez mais raro, quase tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.

7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade, mas o método da ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental. Mas aí a experiência se converteu em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Um vez vencido e abandonado o saber da experiência e uma vez o conhecimento da existência humana, temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana nela inserindo-se e transformando-a. A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.

A segunda nota sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível , a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto quenão se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem pré-ver nem pré-dizer.

(tradução: João Wanderley Geraldi)

Notas
[*] Palestra proferida no 13º COLE-Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001.

[1.] Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível no português: "Se diria que todo lo que pasa está organizado para que nada nos pase" exceto se optássemos por uma tradução como "Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada se nos passe". (Nota do tradutor)
[2.] Em espanhol, escreve-se "extranjero". (Nota do tradutor)
[3.] Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)


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