Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A ética do gênero HUMANO


Como vimos no Capítulo III, a concepção complexa do gênero humano comporta a tríade Indivíduo/sociedade/espécie. Os indivíduos são mais do que produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas o mesmo processo é produzido por indivíduos a cada geração. As interações entre indivíduos produzem a sociedade e esta retroage sobre os indivíduos.

A cultura, no sentido genérico, emerge destas interações, reúne-as e confere-lhes valor. Indivíduo/sociedade/espécie sustentam-se, pois, em sentido pleno: apóiam-se, nutrem-se e reúnem-se.

Assim, indivíduo/sociedade/espécie são não apenas inseparáveis, mas co-produtores um do outro. Cada um destes termos é, ao mesmo tempo, meio e fim dos outros. Não se pode absolutizar nenhum deles e fazer de um só o fim supremo da tríade; esta é, em si própria, rotativamente, seu próprio fim. Estes elementos não poderiam, por conseqüência, ser entendidos como dissociados: qualquer concepção do gênero humano significa desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencerà espécie humana.

No seio desta tríade complexa emerge a consciência. Desde então, a ética propriamente humana, ou seja, a antropo-ética, deve ser considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano. Essa é a base para ensinar a ética do futuro.

A antropo-ética supõe a decisão consciente e esclarecida de:

•assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade do nosso ser;

•alcançar a humanidade em nós mesmos em nossa consciência pessoal;

•assumir o destino humano em suas antinomias e plenitude. A antropo-ética instrui-nos a assumir a missão antropológica do milênio:

➢trabalhar para a humanização da humanidade;
➢efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer à vida, guiar a vida; ➢alcançar a unidade planetária na diversidade;
➢respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo;
➢desenvolver a ética da solidariedade;
➢desenvolver a ética da compreensão;
➢ensinar a ética do gênero humano.

A antropo-ética compreende, assim, a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspiração e vontade, mas também aposta no incerto. Ela é consciência individual além da individualidade.

1. O CIRCUITO INDIVÍDUO/SOCIEDADE:

ENSINAR A DEMOCRACIA

Indivíduo e Sociedade existem mutuamente. A democracia favorece a relação rica e complexa indivíduo/sociedade, em que os indivíduos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente.

A democracia fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados e, desse modo, reduz a servidão (que determina o poder que não sofre a retroação daqueles que submete); nesse sentido, a democracia é mais do que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos.

Diferentemente das sociedade democráticas que funcionam graças às liberdades individuais e à responsabilização dos indivíduos, as sociedades autoritárias ou totalitárias colonizam os indivíduos, que não são mais do que sujeitos; na democracia, o indivíduo é cidadão, pessoa jurídica e responsável; por um lado, ex- prime seus desejos e interesses, por outro, é responsável e solidário com sua cidade.

1.1 Democracia e complexidade

A democracia não pode ser definida de modo simples. A soberania do povo cidadão comporta ao mesmo tempo a autolimitação desta soberania pela obediência às leis e a transferência da soberania aos eleitos. A democracia comporta ao mesmo tempo a autolimitação do poder do Estado pela separação dos poderes, a garantia dos direitos individuais e a proteção da vida privada.

A democracia, evidentemente, necessita do consenso da maioria dos cidadãos e do respeito às regras democráticas. Necessita de que a maioria dos cidadãos acredite na democracia. Mas, do mesmo modo que o consenso, a democracia necessita de diversidade e antagonismos.

A experiência do totalitarismo enfatizou o caráter-chave da democracia: seu elo vital com a diversidade. A democracia supõe e nutre a diversidade dos interesses, assim como a diversidade de idéias. O respeito à diversidade significa que a democracia não pode ser identificada com a ditadura da maioria sobre as minorias; deve comportar o direito das minorias e dos contestadoresà existência e à expressão, e deve permitir a expressão das idéias heréticas e desviantes. Do mesmo modo que é preciso proteger a diversidade das espécies para salvaguardar a biosfera, é preciso proteger a diversidade de idéias e opiniões, bem como a diversidade de fontes de informação e de meios de informação (impressa, mídia), para salva-guardar a vida democrática.

A democracia necessita ao mesmo tempo de conflitos de idéias e de opiniões, que lhe conferem sua vitalidade e produtividade. Mas a vitalidade e a produtividade dos conflitos só podem se expandir em obediência às regras democráticas que regulam os antagonismos, substituindo as lutas físicas pelas lutas de idéias, e que determinam, por meio de debates e das eleições, o vencedor provisório das idéias em conflito, aquele que tem, em troca, a responsabilidade de prestar contas da aplicação de suas idéias.

Desse modo, exigindo ao mesmo tempo consenso, diversidade e conflituosidade, a democracia é um sistema complexo de organização e de civilização políticas que nutre e se nutre da autonomia de espírito dos indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão, do seu civismo, que nutre e se nutre do ideal Liberdade/Igualdade/Fraternidade, o qual comporta uma conflituosidade criadora entre estes três termos inseparáveis. A democracia constitui, portanto, um sistema político com- plexo, no sentido de que vive de pluralidades, concorrências e antagonismos, permanecendo como comunidade.

Assim, a democracia constitui a união entre a união e a desunião; tolera e nutre-se endemicamente, às vezes explosivamente, de conflitos que lhe conferem vitalidade. Vive da pluralidade, até mesmo na cúpula do Estado (divisão dos poderes executivo, legislativo, judiciário), e deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria.

O desenvolvimento das complexidades políticas, econômicas e sociais nutre os avanços da individualidade. Esta se afirma em seus direitos (do homem e do cidadão) e adquire liberdades existenciais (escolha autônoma do cônjuge, da residência, do lazer...).

1.2 A dialógica democrática Assim, todas as características importantes da democracia têm um caráter dialógico que une de modo complementar termos antagônicos: consenso/conflito, liberdade/igualdade/fraternidade, comunidade nacional/antagonismos sociais e ideológicos.

Enfim, a democracia depende das condições que dependem de seu exercício (espírito cívico, aceitação da regra do jogo democrático). As democracias são frágeis, vivem conflitos, e estes podem fazê-la submergir. A democracia ainda não está generalizada em todo o planeta, que tanto comporta ditaduras e resíduos de totalitarismo do século XX, quanto germes de novos totalitarismos. Continuará ameaçada no século XXI. Além disso, as democracias existentes não estão concluídas, mas incompletas ou inacabadas.

A democratização das sociedades ocidentais foi um longo processo que continuou de maneira muito irregular em certas áreas, como o acesso das mulheres à igualdade com os homens no casal, no trabalho, na carreira pública. O socialismo ocidental não conseguiu democratizar a organização econômica/social de nossas sociedades.

As empresas permanecem sistemas autoritários hierárquicos, parcialmente democratizados, na base, por conselhos ou sindicatos. É certo que há limites à democratização em organizações cuja eficácia é fundada na obediência, como no Exército. Mas podemo-nos questionar se, como algumas empresas o descobrem, é possível adquirir outra eficácia por meio do apelo para a iniciativa e para a responsabilidade dos indivíduos ou dos grupos.

De todo modo, nossas democracias comportam carência e lacunas. Assim, os cidadãos envolvidos não são consultados sobre as alternativas em matéria de transportes, por exemplo (TGV, aviões cargueiros, auto-estradas etc.).

Não existem apenas democracias inacabadas. Existem processos de regressão democrática que tendem a posicionar os indivíduos à margem das grandes decisões políticas (com o pretexto de que estas são muito“ complicadas” de serem tomadas e devem ser decididas por“ expertos” tecnocratas), a atrofiar competências, a ameaçar a diversidade e a degradar o civismo.

Estes processos de regressão estão ligados à crescente complexidade dos problemas e à maneira mutiladora de tratá-los. A política fragmenta-se em diversos campos e a possibilidade de concebê-los juntos diminui ou desaparece.

Do mesmo modo, ocorre a despolitização da política, que se autodissolve na administração, na técnica (especialização), na economia, no pensamento quantificante (sondagens, estatísticas). A política fragmentada perde a compreensão da vida, dos sofrimentos, dos desamparos, das solidões, das necessidades não- quantificáveis. Tudo isso contribui para a gigantesca regressão democrática, com os cidadãos apartados dos problemas fundamentais da cidade.

1.3 O futuro da democracia

As democracias do século XXI serão cada vez mais confrontadas ao gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Esta enorme máquina não produz apenas conhecimento e elucidação, mas produz também ignorância e cegueira.

Os avanços disciplinares das ciências não trouxeram apenas as vantagens da divisão do trabalho, trouxeram também os inconvenientes da hiperespecialização, do parcelamento e da fragmentação do saber. Este tornou-se mais e mais esotérico (acessível apenas aos especialistas) e anônimo (concentrado nos bancos de dados e utilizado por instâncias anônimas, a começar pelo Estado). Da mesma forma, o conhecimento técnico está reservado aos especialistas, cuja competência em uma área fechada é acompanhado de incompetência quando esta área é parasitada por influências externas ou modificada por algum acontecimento novo. Nessas condições, o cidadão perde o direito ao conhecimento.

Tem o direito de adquirir saber especializado ao fazer estudos ad hoc, mas é despojado na qualidade cidadão, de qualquer ponto de vista global e pertinente. A arma atômica, por exemplo, retirou por completo do cidadão a possibilidade de pensá-la ou controlá-la. Sua utilização é deixada geralmente à decisão pessoal e única do chefe de Estado, sem consulta a nenhuma instância democrática regular. Quanto mais a política se torna técnica, mais a competência democrática regride.

O problema não se apresenta somente para a crise ou a guerra. É problema da vida cotidiana: o desenvolvimento da tecnoburocracia instaura o reinado dos peritos em áreas que, até então, dependiam de discussões e decisões políticas; ele suplanta os cidadãos nos domínios abertos às manipulações biológicas da paternidade, da maternidade, do nascimento, da morte. Estes problemas, com raras exceções, não entraram na consciência política nem no debate democrático do século XX.

De maneira mais profunda, o fosso que cresce entre a tecnociência esotérica, hiperespecializada, e os cidadãos cria a dualidade entre os que conhecem cujo conhecimento é de resto parcelado, incapaz de textualizar e globalizar e os ignorantes, isto é, o conjunto dos cidadãos. Desse modo, cria-se nova fratura social entre uma “nova classe” e os cidadãos.

O mesmo processo está em andamento no acesso às novas tecnologias de comunicação entre os países ricos e os países pobres. Os cidadãos são expulsos do campo político, que é cada vez mais dominado pelos “ expertos” , e o domínio da “nova classe” impede de fato a democratização do conhecimento.

Nessas condições, a redução do político ao técnico e ao econômico, a redução do econômico ao crescimento, a perda dos referenciais e dos horizontes, tudo isso conduz ao enfraquecimento do civismo, à fuga e ao refúgio na vida privada, a alternância entre apatia e revolta violenta e, assim, a despeito da permanência das instituições democráticas, a vida democrática se enfraquece.

Nessas condições, impõe-se às sociedades reputadas como democráticas a necessidade de regenerar a democracia, enquanto, em grande parte do mundo, se apresenta o problema de gerar democracia, ao mesmo tempo em que as necessidades planetárias nos reclamam gerar nova possibilidade democrática nesta escala.

A regeneração democrática supõe a regeneração do civismo, a regeneração do civismo supõe a regeneração da solidariedade e da responsabilidade, ou seja, o desenvolvimento da antropo-ética. (15)

15. Poder-se-ia nos perguntar, finalmente, se a escola não poderia ser prática e concreta- mente um laboratório de vida democrática. Obviamente, tratar-se-ia de democracia limitada, no sentido de que um professor não seria eleito por seus alunos, de que a necessária autodisciplina coletiva não poderia eliminar a disciplina imposta e igualmente no sentido de que a igualdade de princípio entre os que sabem e os que aprendem não poderia ser abolida.

Todavia (e de qualquer maneira a autonomia adquirida o pede, pela faixa etária dos adolescentes), a autoridade não poderia ser incondicional, e poderiam ser instauradas regras de questionamento das decisões consideradas arbitrárias, especialmente com a instituição de um conselho de classe eleito pelos alunos, ou mesmo por instâncias de arbitragem externas. A reforma francesa dos liceus, realizada em 1999, instaura este tipo de mecanismo.

Mas, sobretudo, a sala de aula deve ser um local de aprendizagem do debate argumentado, das regras necessáriasà discussão, da tomada de consciência das necessidades e dos procedimentos de compreensão do pensamento do outro, da escuta e do respeito às vozes minoritárias e marginalizadas. Por isso, a aprendizagem da compreensão deve desempenhar um papel capital no aprendizado democrático.


2. O CIRCUITO INDIVÍDUO/ESPÉCIE:

ENSINAR A CIDADANIA TERRESTRE

A ligação ética do indivíduo à espécie humana foi afirmada desde as civilizações da Antiguidade. Foi o autor latino Terêncio que, no século II antes da era cristã, dizia, por intermédio de um dos personagens do "O homem que a si mesmo castiga: Homo sum, humani nihil a me alienum puto”(“ Sou homem, nada do que é humano me é estranho.” ). Esta antropo-ética foi recoberta, obscurecida, minimizada pela séticas culturais diversas e fechadas, mas não deixou de ser mantida nas grandes religiões universalistas e de ressurgir nas éticas universalistas, no humanismo, nos direitos do homem, no imperativo kantiano.

Kant já dizia que a finitude geográfica de nossa terra impõe a seus habitantes o princípio de hospitalidade universal, que reconhece ao outro o direito de não ser tratado como inimigo.

A partir do século XX, a comunidade de destino terrestre impõe de modo vital a solidariedade.

3. A HUMANIDADE COMO DESTINO PLANETÁRIO

A comunidade de destino planetário permite assumir e cumprir esta parte de antropo-ética, que se refere à relação entre indivíduo singular e espécie humana como todo.

Ela deve empenhar-se para que a espécie humana, sem deixar de ser a instância biológico-reprodutor a do humano, se desenvolva e dê, finalmente, com a participação dos indivíduos e das sociedades, nascimento concreto à Humanidade como consciência comum e solidariedade planetária do gênero humano. A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma“Pátria” , a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo. A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez, ameaçada de morte; a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaça de autodestruição, o imperativo tornou-se salvar a Humanidade, realizando-a.

Na verdade, a dominação, a opressão, a barbárie humanas permanecem no planeta e agravam-se. Trata-se de um problema antropo-histórico fundamental, para o qual não há solução a priori, apenas melhoras possíveis, e que somente poderia tratar do processo multidimensional que tenderia a civilizar cada um de nós, nossas sociedades, a Terra. Sós e em conjunto com a política do homem, (16) a política de civilização,
(17) a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra-Pátria reduziriam a ignomínia no mundo.

16. Cf. Edgar Morin. Introductionà une politique de l’homme, nouvelleédition. Le Seuil Points, 1999.
17. Cf. Edgar Morin, Sami Naïr. Politique de civilisation, Arlea, 1997.


Por muito tempo ainda (cf. Capítulo III), a expansão e a livre expressão dos indivíduos constituem nosso propósito ético e político para o planeta.

Isso supõe ao mesmo tempo o desenvolvimento da relação indivíduo/sociedade, no sentido democrático, e o aprimoramento da relação indivíduo/espécie, no sentido da realização da Humanidade; ou seja, a permanência integrada dos indivíduos no desenvolvimento mútuo dos termos da tríade indivíduo/sociedade/espécie.

Não possuímos as chaves que abririam as portas de um futuro melhor. Não conhecemos o caminho traçado.“El camino se hace al andar ”(18) (Antonio Machado).

18.“Ao andar se faz o caminho.”

Podemos, porém, explicitar nossas finalidades: a busca da hominização na humanização, pelo acesso à cidadania terrena. Por uma comunidade planetária organizada: não seria esta a missão da verdadeira Organização das Nações Unidas?

Ensinar a COMPREENSÃO


A situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdependências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários com a vida e a morte, de agora em diante, une os humanos uns aos outros. A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, Internet.

Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior.

O problema da compreensão tornou-se crucial para os humanos.

E, por este motivo, deve ser uma das finalidades da educação do futuro.

Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, do telefone à Internet, traz por si mesma a compreensão. A compreensão não pode ser quantificada. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

O problema da compreensãoé duplamente polarizado:

•Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre pessoas, culturas, povos de diferentes origens culturais.

•Um pólo individual é o das relações particulares entre próximos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela incompreensão (como será indicado mais adiante). O axioma “quanto mais próximos estamos, melhor compreendemos” é apenas uma verdade relativa à qual se pode opor o axioma contrário “quanto mais estamos próximos, menos compreende-mos”, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente.

1. AS DUAS COMPREENSÕES

A comunicação não garante a compreensão. A informação, se for bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição primeira necessária, mas não suficiente, para a compreensão.

Há duas formas de compreensão: a compreensão intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva. Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, com - prehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno).

A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação.

Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é, bem entendido, necessária para a compreensão intelectual ou objetiva.

A compreensão humana vai além da explicação. A explicação é bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das coisas anônimas ou materiais.

É insuficiente para a compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vejo uma criança chorando, vou compreendê-la, não por medir o grau de salinidade de suas lágrimas, mas por buscar em mim minhas aflições infantis, identificando-a comigo e identificando-me com ela. O outro não apenas é percebido objetivamente,é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.

2. EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃO

Os obstáculos exteriores à compreensão intelectual ou objetiva são múltiplos. A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas idéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todos os lados:

•Existe o“ruído” que parasita a transmissão da informação, cria o mal-entendido ou o não-entendido.

•Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra“ cultura” , verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que, não sendo naturalmente inato, deve ser aprendido e adquirido; pode significar os usos, valores, crenças de uma etnia ou de uma nação; pode significar toda a contribuição das huma- nidades, das literaturas, da arte e da filosofia.

•Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente dos ritos de cortesia, o que pode levar a ofender inconscientemente ou a desqualificar a si mesmo perante o outro.

•Existe a incompreensão dos Valores imperativos propagados no seio de outra cultura, como o são nas sociedades tradicionais o respeito aos idosos, a obediência incondicional das crianças, a crença religiosa ou, ao contrário, em nossas sociedades democráticas contemporâneas, o culto ao indivíduo e o respeitoàs liberdades.

•Existe a incompreensão dos imperativo séticos próprios a uma cultura, o imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas sociedades evoluídas.

•Existe freqüentemente a impossibilidade, no âmago da visão do mundo, de compreender as idéias ou os argumentos de outra visão do mundo, como de resto no âmago da filosofia, de compreender outra filosofia.

•Existe, enfim e sobretudo, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação a outra. Os obstáculos intrínsecos às duas compreensões são enormes; são não somente a indiferença, mas também o egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo, que têm como traço comum se situarem no centro do mundo e considerar como secundário, insignificante ou hostil tudo o que é estranho ou distante.

2.1 O egocentrismo

O egocentrismo cultiva a self-deception, tapeação de si próprio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pela tendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa de todos os males. A self-deception é um jogo rotativo complexo de mentira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a perceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a selecionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável, selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar o desonroso.

O Cercle de la Croix, de Iain Peaars, mostra bem, em quatro narrativas diferentes dos mesmos acontecimentos e do mesmo homicídio, a incompatibilidade entre as narrativas devido não somente à dissimulação e à mentira, mas às idéias preconcebidas, às racionalizações, ao egocentrismo ou à crença religiosa.

A Féerie por une autre fois, de Louis-Ferdinand Céline, é testemunho único de autojustificação frenética do autor, de sua incapacidade de se autocriticar, de seu raciocínio paranóico. De fato, a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros.

O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje a incompreensão deteriora as relações pais-filhos, marido-esposas. Expande-se como um câncer na vida cotidiana, provocando calúnias, agressões, homicídios psíquicos (desejos de morte). O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.

2.2 Etnocentrismo e sociocentrismo

O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até mesmo despojar o estrangeiro da qualidade de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas.

As idéias preconcebidas, as racionalizações com base em premissas arbitrárias, a autojustificação frenética, a incapacidade de se autocriticar, os raciocínios paranóicos, a arrogância, a recusa, o desprezo, a fabricação e a condenação de culpados são as causas e as conseqüências das piores incompreensões, oriundas tanto do egocentrismo quanto do etnocentrismo.

A incompreensão produz tanto o embrutecimento quanto este produz a incompreensão. A indignação economiza o exame e a análise. Como disse Clément Rosset: “A desqualificação por motivos de ordem moral permite evitar qualquer esforço de inteligência do objeto desqualificado de maneira que um juízo moral traduz sempre a recusa de analisar e mesmo a recusa de pensar”. (12)

Como Westermarck assinalava: “O caráter distintivo da indignação moral continua sendo o desejo instintivo de devolver pena por pena.”

A incapacidade de conceber um complexo e a redução do conhecimento de um conjunto ao conhecimento de uma de suas partes provocam conseqüências ainda mais funestas no mundo das relações humanas que no do conhecimento do mundo físico.

12. C. Rosset. Le démon de la tautologie, suivi de cinq pièces morales. Minuit, 1997, p. 68.

2.3 O espírito redutor

Reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seus elementos, considerado como o mais significativo, tem conseqüências piores em ética do que em conhecimento físico. Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a redução da personalidade, múltipla por natureza, a um único de seus traços. Se o traço for favorável, haverá desconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável, haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão.

A compreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes. Como dizia Hegel:

O pensamento abstrato nada vê no assassino além desta qualidade abstrata (retirada de seu complexo) e (destrói) nele, com a ajuda desta única qualidade, o que resta de sua humanidade.”

Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa.

Assim, os obstáculos à compreensão são múltiplos e multiformes: os mais graves são constituídos pela cadeia egocentrismo/autojustificação/self-deception, pelas possessões e reduções, assim como pelo talião e pela vingança — estruturas arraigadas de modo indelével no espírito humano, que ele não pode arrancar, mas que ele pode e deve superar.

A conjunção das incompreensões, a intelectual e a humana, a individual e a coletiva, constitui obstáculos maiores para a melhoria das relações entre indivíduos, grupos, povos, nações.

Não são somente as vias econômicas, jurídicas, sociais, culturais que facilitarão as vias da compreensão; é preciso também recorrer a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver a dupla compreensão, intelectual e humana.

3. A ÉTICA DA COMPREENSÃO

A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as manifestações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza.

A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão.

A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noção de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas.

A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas.

O que favorece a compreensão é:

3.1 O “bem pensar”

Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias).

3.2 A introspecção

A prática mental do auto-exame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão.

O auto-exame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo.

Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas. (13)

13.“É um idiota” ,“É um crápula” são expressões que exprimem ao mesmo tempo a total incompreensão e a pretensão à soberania intelectual e moral.

4. A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA

A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana.

Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov. Podemos enfim aprender com eles as maiores lições de vida, a compaixão do sofrimento dos humilhados e a verdadeira compreensão.

4.1 A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro

Estamos abertos para determinadas pessoas próximas privilegiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo, fechados para as demais.

O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetividade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e compreender os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos normais. Aquele que sente repugnância pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo coração, no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentes às misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseração na leitura de um romance ou na projeção de um filme.

4.2 A interiorização da tolerância

A verdadeira tolerância não é indiferente às idéias ou ao ceticismo generalizados. Supõe convicção, fé, escolha ética e ao mesmo tempo aceitação da expressão das idéias, convicções, escolhas contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento ao suportar a expressão de idéias negativas ou, segundo nossa opinião, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento.

Há quatro graus de tolerância: o primeiro, expresso por Voltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propósito que nos parece ignóbil; isso não é respeitar o ignóbil, trata-se de evitar que se imponha nossa concepção sobre o ignóbil a fim de proibir uma fala.

O segundo grau é inseparável da opção democrática: a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada um a respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas.

O terceiro grau obedece à concepção de Niels Bohr, para quem o contrário de uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; dito de outra maneira, há uma verdade na idéia antagônica à nossa, e é esta verdade que é preciso respeitar.

O quarto grau vem da consciência das possessões humanas pelos mitos, ideologias, idéias ou deuses, assim como da consciência das derivas que levam os indivíduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. A tolerância vale, com certeza, para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos homicidas.

5. COMPREENSÃO,ÉTICA E CULTURA PLANETÁRIAS

Devemos relacionar a ética da compreensão entre as pessoas com a ética da era planetária, que pede a mundialização da compreensão. A única verdadeira mundialização que estaria a serviço do gênero humano é a da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é também aprender e reaprender incessantemente.

Como podem as culturas comunicar?

Magoroh Maruyama fornece-nos uma indicação útil. (14)

14. ”Mindiscapes, individuals and cultures in management” , in Journal of Management Inquiry, vol. 2, nº 2 junho 1993, p. 138-154. Sage Publication.

Em cada cultura, as mentalidades dominantes são etno ou sociocêntricas, isto é, mais ou menos fechadas em relaçãoàs outras culturas. Mas existem, dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas, desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos mistos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas vezes os desviantes são escritores ou poetas cuja mensagem pode se irradiar tanto no próprio país quanto no mundo exterior.

Quando se trata de arte, de música, de literatura, de pensamento, a mundialização cultural não é homogeneizadora. Formam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmo tempo a expressão das originalidades nacionais em seu seio. Foi assim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, no Realismo, no Surrealismo.

Hoje, os romances japoneses, latino-americanos, africanos são publicados nas grandes línguas européias e os romances europeus são publicados na Ásia, no Oriente, na África e nas Américas. As traduções dos romances, ensaios, livros filosóficos de uma língua para outra permitem a cada país ter acesso às obras dos outros países e de nutrir-se das culturas do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, o caldo de cultura planetária.

Com certeza, aquele que recolhe as contribuições originais de múltiplas culturas está ainda limitado às esferas restritas de cada nação; mas seu desenvolvimento é um traço marcante da segunda metade do século XX e deveria estender-se até o século XXI, o que seria triunfal para a compreensão entre os humanos.

Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidente múltiplas curiosidades e interrogações. O Ocidente já havia traduzido o Av est a e os Upan i shads no século XVIII, Confúcio e Lao-Tseu no século XIX, mas as mensagens da Ásia permaneciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no século XX que a arte africana, os filósofos e místicos do Islã, os textos sagrados da Índia, o pensamento do Tao, o do budismo transformaram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundo do ativismo, do produtivismo, da eficácia, do divertimento, que aspira à paz interior e à relação harmoniosa com o corpo.

A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo não-compreensiva e incompreensível. Mas a racionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européia permite a compreensão e a integração do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou.

O Ocidente deve também incorporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o ativismo, o pragmatismo, o“ quantitativismo” , o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve também salvaguardar, regenerar e propagar o melhor de sua cultura, que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteção da esfera privada do cidadão.

A compreensão entre sociedades supõe sociedades democráticas abertas, o que significa que o caminho da Compreensão entre culturas, povos e nações passa pela generalização das sociedades democráticas abertas.

Mas não nos esqueçamos de que, mesmo nas sociedades democráticas abertas, permanece o problema epistemológico da compreensão: para que possa haver compreensão entre estruturas de pensamento, é preciso passar à meta estrutura do pensamento que compreenda as causas da incompreensão de umas em relação às outras e que possa superá-las.

A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana.

O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões mútuas. Dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro.

Enfrentar as INCERTEZAS

“Os deuses criam-nos muitas surpresas: o espera- do não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho.”
Eurípedes

Ainda não incorporamos a mensagem de Eurípedes, que é a de estarmos prontos para o inesperado. O fim do século XX foi propício, entretanto, para compreender a incerteza irremediável da história humana.

Os séculos precedentes sempre acreditaram em um futuro, fosse ele repetitivo ou progressivo. O século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, sua imprevisibilidade. Esta tomada de consciência deve ser acompanhada por outra, retroativa e correlativa: a de que a história humana foi e continua a ser uma aventura desconhecida.

Grande conquista da inteligência seria poder enfim se libertar da ilusão de prever o destino humano. O futuro permanece aberto e imprevisível.

Com certeza, existem determinantes econômicas, sociológicas e outras ao longo da história, mas estas encontram-se em relação instável e incerta com acidentes e imprevistos numerosos, que fazem bifurcar ou desviar seu curso. As civilizações tradicionais viviam na certeza de um tempo cíclico cujo funcionamento devia ser assegurado por sacrifícios às vezes humanos.

A civilização moderna viveu com a certeza do progresso histórico.

A tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a destruição do mito do progresso. O progresso é certamente possível, mas é incerto. A isso acrescentam-se todas as incertezas devido à velocidade e à aceleração dos processos complexos e aleatórios de nossa era planetária, que nem a mente humana, nem um supercomputador, nem um demônio de Laplace poderiam abarcar.

1. A INCERTEZA HISTÓRICA

Quem teria pensado, na primavera de 1914, que um atentado cometido em Sarajevo desencadearia a guerra mundial que duraria quatro anos e que faria milhões de vítimas?

Quem teria pensado, em 1916, que o exército russo se desagregaria e que um pequeno partido marxista, marginal, provocaria, contrariamente à própria doutrina, a revolução comunista em outubro de 1917?

Quem teria pensado, em 1918, que o tratado de paz assinado trazia em si os germes da Segunda Guerra Mundial, que arrebentaria em 1939?

Quem teria pensado, na prosperidade de 1927, que uma catástrofe econômica, iniciada em 1929, em Wall Street, se abateria sobre o planeta?

Quem teria pensado, em 1930, que Hitler chegaria legalmente ao poder em 1933?

Quem teria pensado, em 1940-41, afora alguns irrealistas, que o formidável domínio nazista sobre a Europa, após os impressionantes progressos da Wehrmacht na URSS até as portas de Leningrado e Moscou, seria acompanhado em 1942 pela reviravolta total da situação?

Quem teria pensado, em 1943, durante a plena aliança entre soviéticos e ocidentais, que a guerra fria se manifestaria três anos mais tarde entre estes mesmos aliados?

Quem teria pensado, em 1980, afora alguns iluminados, que o Império Soviético implodiria em 1989?

Quem teria imaginado, em 1989, a Guerra do Golfo e a guerra que esfacelaria a Iugoslávia?

Quem, em janeiro de 1999, teria sonhado com os ataques aéreos sobre a Sérvia, em março de 1999, e no momento em que estas linhas são escritas, pode medir suas conseqüências?

Ninguém pôde responder a estas questões no momento da escrita destas linhas, que, talvez, ficarão ainda sem resposta durante o século XXI.

Como dizia Patocka:“O devenir é doravante problematizado e o será para sempre”. O futuro chama-se incerteza.

2. A HISTÓRIA CRIADORA E DESTRUIDORA

O surgimento do novo não pode ser previsto, senão não seria novo. O surgimento de uma criação não pode ser conhecido por antecipação, senão não haveria criação.

A história avança, não de modo frontal como um rio, mas por desvios que decorrem de inovações ou de criações internas, de acontecimentos ou acidentes externos. A transformação interna começa a partir de criações inicialmente locais e quase microscópicas, efetua-se em meio inicialmente restrito a alguns indivíduos e surge como desvios em relaçãoà normalidade.

Se o desvio não for esmagado, pode, em condições favoráveis, proporcionadas geralmente por crises, paralisar a regulação que o freava ou reprimia, para, em seguida, proliferar de modo epidêmico, desenvolver-se, propagar-se e tornar-se tendência cada vez mais poderosa, produzindo a nova normalidade. Foi assim com todas as invenções técnicas, a atrelagem, a bússola, a imprensa, a máquina a vapor, o cinema, até com o computador; foi assim com o capitalismo nas cidades-estado do Renascimento; assim foi com todas as grandes religiões universais, nascidas de uma preleção singular, com Sidharta, Moisés, Jesus, Maomé, Lutero; assim foi com todas as grandes ideologias universais, nascidas em algumas mentes marginais.

Os despotismos e totalitarismos sabem que os indivíduos portadores de diferenças constituem um desvio potencial; eles os eliminam e aniquilam os microfocos de desvios. Entretanto, os despotismos acabam por abrandar-se, e o desvio surge, às vezes na própria cúpula do Estado, freqüentemente de maneira inesperada, na mente de novo soberano ou de novo secretário-geral.

Toda evolução é fruto do desvio bem-sucedido cujo desenvolvimento transforma o sistema onde nasceu: desorganiza o sistema, reorganizando-o.

As grandes transformações são morfogêneses, criadoras de formas novas que podem constituir verdadeiras metamorfoses. De qualquer maneira, não há evolução que não seja desorganizadora/reorganizadora em seu processo de transformação ou de metamorfose. Não existem apenas inovações e criações.

Existem também destruições. Estas podem trazer novos desenvolvimentos: assim, os avanços da técnica, da indústria e do capitalismo levaram à destruição de civilizações tradicionais. As destruições maciças e brutais chegam do exterior, pela conquista e pelo extermínio que aniquilaram impérios e cidades da Antiguidade.

No século XVI, a conquista espanhola constituiu uma catástrofe total para os impérios e civilizações dos incas e dos astecas. O século XX assistiu
à queda do Império Otomano, do Império Austro-húngaro e à implosão do Império Soviético. Além disso, muitas conquistas foram perdidas para sempre após cataclismos históricos. Tantos saberes, tantas obras de pensamento, tantas obras-primas literárias, inscritas nos livros, foram destruídas com estes livros.

Há fraca integração da experiência humana adquirida e forte desperdício desta experiência, dissipada em grande parte a cada geração. De fato, há um enorme desperdício das aquisições na história. Enfim, quantas boas idéias não foram integradas, mas, ao contrário, rejeitadas pelas normas, tabus, interdições.

A história também nos mostra criações surpreendentes, como em Atenas, onde surgiram, concomitantemente, cinco séculos antes de nossa era, a democracia e a filosofia, e terríveis destruições, não somente de sociedades, mas de civilizações. A história não constitui, portanto, uma evolução linear. Conhece turbulências, bifurcações, desvios, fases imóveis, êxtases, períodos de latência seguidos de virulências, como o cristianismo, que ficou incubado dois séculos antes de submergir o Impé- rio Romano; processos epidêmicos extremamente rápidos, como a difusão do Islamismo.

Trata-se da sobreposição de devenires que se entrechocam com imprevistos, incertezas, que comportam evoluções, involuções, progressões, regressões, rupturas. E quando se constituiu a história planetária, esta comportou, como vimos neste século, duas guerras mundiais e erupções totalitárias.

A história é um complexo de ordem, desordem e organização. Obedece ao mesmo tempo a determinismos e aos acasos em que surgem incessantemente o “barulho e o furor” . Ela tem sempre duas faces opostas: civilização e barbárie, criação e destruição, gênese e morte...

3. UM MUNDO INCERTO

A aventura incerta da humanidade não faz mais do que dar prosseguimento, em sua esfera, à aventura incerta do cosmo, nascida de um acidente impensável para nós, e que continua no devenir de criações e destruições.

Aprendemos, no final do século XX que, à visão do universo obediente a uma ordem impecável, é preciso substituir a visão na qual este universo é o jogo e o risco da dialógica (relação ao mesmo tempo antagônica, concorrente e complementar) entre a ordem, a desordem e a organização.

A Terra, provavelmente, em sua origem — um monte de detritos cósmicos oriundos de uma explosão solar—, ela própria se auto-organizou na dialógica entre ordem/desordem/organização e sofreu não apenas erupções e terremotos, mas também o choque violento de aerolitos, dos quais um talvez tenha provocado o desprendimento da Lua.(10)

4. ENFRENTAR AS INCERTEZAS

Nova consciência começa a surgir: o homem, confrontado de todos os lados às incertezas, é levado em nova aventura. É preciso aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época de mudanças em que os valores são ambivalentes, em que tudo é ligado. É por isso que a educação do futuro deve se voltar para as incertezas ligadas ao conhecimento (cf. Capítulo II), pois existe:

•Um princípio de incerteza cérebro-mental, que decorre do processo de tradução/reconstrução próprio a todo conhecimento.

•Um princípio de incerteza lógica: como dizia Pascal muito claramente,“Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a não contradição é sinal de verdade.

•Um princípio da incerteza racional, já que a racionalidade, se não mantém autocrítica vigilante, cai na racionalização.

•Um princípio da incerteza psicológica: existe a impossibilidade de ser totalmente consciente do que se passa na maquinaria de nossa mente, que conserva sempre algo de fundamentalmente inconsciente. Existe, portanto, a dificuldade do auto-exame crítico, para o qual nossa sinceridade não é garantia de certeza, e existem limites para qualquer autoconhecimento.

10. Ver Capítulo III “ Ensinar a condição humana”, 1.3 “A condição terrestre”.

Tantos problemas dramaticamente unidos nos fazem pensar que o mundo não só está em crise; encontra-se em violento estado no qual se enfrentam as forças de morte e as forças de vida, que se pode chamar de agonia.

Ainda que solidários, os humanos permanecem inimigos uns dos outros, e o desencadeamento de ódios de raça, religião, ideologia conduz sempre a guerras, massacres, torturas, ódios, desprezo. Os processos são destruidores de um mundo antigo, aqui multimilenar, ali, multissecular.

A humanidade não consegue gerar a Humanidade. Não sabemos ainda se se trata só da agonia de um velho mundo—prenúncio do novo nascimento — ou da agonia mortal. Nova consciência começa a surgir: a humanidade é conduzida para uma aventura desconhecida.

4.1 A incerteza do real

Dessa forma, a realidade nãoé facilmente legível. As idéias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade nãoé outra senão nossa idéia da realidade.

Por isso, importa não ser realista no sentido trivial (adaptar- se ao imediato), nem irrealista no sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real.

Isto nos mostra queé preciso saber interpretar a realidade antes de reconhecer onde está o realismo. Uma vez mais chegamos a incertezas sobre a realidade, que impregnam de incerteza os realismos e revelam às vezes que aparentes irrealismos eram realistas.

4.2 A incerteza do conhecimento O conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Entretanto, é nas certezas doutrinárias, dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores ilusões; ao contrário, a consciência do caráter incerto do ato cognitivo constitui a oportunidade de chegar ao conhecimento pertinente, o que pede exames, verificações e convergência dos indícios; assim, nas palavras cruzadas, atinge-se a precisão para cada palavra na adequação ao mesmo tempo de sua definição e sua congruência com as outras palavras que contêm letras comuns; em seguida, a concordância geral que se estabelece entre todas as palavras constitui a verificação de conjunto que confirma a legitimidade das diferentes palavras inscritas.

Mas a vida, diferentemente das palavras cruzadas, compreende espaços sem definição, espaços com falsas definições e, sobretudo, a ausência de um quadro geral fechado; é somente aí que se pode isolar um quadro e tratar os elementos classificáveis, como no quadro de Mendeleiev, que se pode al- cançar certezas. Uma vez mais repetimos: o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas.

4.3 As incertezas e a ecologia da ação

Temos,às vezes, a impressão de que a ação simplifica, pois em uma alternativa decide-se, escolhe-se. Entretanto, a ação é decisão, escolha, mas é também uma aposta. E na noção de aposta há a consciência do risco e da incerteza.

Aqui intervém a noção de ecologia da ação. Tão logo um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja, esta começa a escapar de suas intenções. Esta ação entra em um universo de interações e é finalmente o meio ambiente que se apossa dela, em sentido que pode contrariar a intenção inicial.

Freqüentemente a ação volta como um bumerangue sobre nossa cabeça. Isto nos obriga a seguir a ação, a tentar corrigi-la — se ainda houver tempo — e, às vezes, a torpedeá-la, como fazem os responsáveis da Nasa, quando explodem um foguete que se desvia de sua trajetória. A ecologia da ação é, em suma, levar em consideração a complexidade que ela supõe, ou seja, o aleatório, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência de derivas e transformações. (11)

Uma das maiores conquistas do século XX foi o estabelecimento de teoremas que limitam o conhecimento, tanto no raciocínio (teorema de Gödel, teorema de Chaitin), como na ação. Neste campo, assinalemos o teorema de Arrow, que erige a impossibilidade de associar o interesse coletivo a interesses individuais, assim como de definir a felicidade coletiva com base em uma coleção de felicidades individuais. De forma mais ampla, é impossível apresentar um algoritmo de otimização para os problemas humanos: a busca da otimização ultrapassa qualquer capacidade de busca disponível e torna finalmente não - ótima, quiçá péssima, a procura do optimum.

Somos conduzidos a nova incerteza entre a busca do bem maior e a do mal menor. Por outro lado, a teoria dos jogos de von Neumann indica-nos que, além do duelo entre dois atores racionais, não se pode decidir com segurança a melhor estratégia. Entretanto, os jogos da vida raramente comportam dois atores e, ainda mais rara- mente, atores racionais.

Enfim, a grande incerteza a enfrentar decorre do que chamamos de ecologia da ação, que compreende três princípios.

11. Cf. E. Morin. Introductionà la pensée complexe. ESF editeur, Paris. 1990.

4.3.1 O circuito risco/precaução O princípio da incerteza provém da dupla necessidade do risco e da precaução. Para toda ação empreendida em meio incerto, existe contradição entre o princípio do risco e o princípio da precaução, sendo um e outro necessários; trata-se de poder uni-los a despeito de sua oposição, segundo as palavras de Péricles, in Tucídides, Guerra do Peloponeso: “Todos sabemos ao mesmo tempo demonstrar extrema audácia e nada empreender sem madura reflexão. Nos outros, a intrepidez é efeito da ignorância, enquanto a reflexão engendra a indecisão.”

4.3.2 O circuito fins/meios

Temos o princípio da incerteza do fim e dos meios. Como os meios e os fins inter-retroagem uns sobre os outros, é quase inevitável que meios sórdidos a serviço de fins nobres pervertam estes e terminem por substituí-los.

Meios de dominação utiliza-dos para um fim libertador podem não apenas contaminar esse fim, mas também se auto-extinguir.

Assim, a Tcheca, após ter pervertido o projeto socialista, se auto-extinguiu, convertendo-se, sob sucessivos nomes como Guépéou, NKVD, KGB, em poderosa polícia suprema destinada a se autoperpetuar.

Entretanto, a astúcia, a mentira, a força a serviço de uma justa causa podem salvá-la sem contaminá-la, com a condição de ter utilizado meios excepcionais e provisórios. Ao contrário, é possível que ações perversas conduzam a resultados felizes, justamente pelas reações que provocam.

Então, não é absolutamente certo que a pureza dos meios conduza aos fins desejados, nem que sua impureza seja necessariamente nefasta.

4.3.3 O circuito ação/contexto

Toda ação escapaà vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retroações do meio em que intervém. Este é o princípio próprio à ecologia da ação. A ação não corre apenas o risco de fracasso, mas de desvio ou de perversão de seu sentido inicial, e pode até mesmo voltar-se contra seus iniciadores. Assim, o estopim da revolução de outubro de 1917 suscitou não a ditadura do proletariado, mas a ditadura sobre o proletariado.

Em sentido mais amplo, as duas vias para o socialismo, a reformista social-democrata e a revolucionária leninista, terminaram ambas em algo bem diferente de suas finalidades. A instalação do rei Juan Carlos na Espanha, conforme a intenção do general Franco de consolidar sua ordem despótica, contribuiu significativamente, ao contrário, para levar a Espanha à democracia.

A ação também pode ter três tipos de conseqüências insuspeitas, como as recenseou Hirschman:

•o efeito perverso (o efeito nefasto inesperadoé mais importante do que o efeito benéfico esperado);

•a inanição da inovação (quanto mais se muda, mais tudo permanece igual);

•a colocação das conquistas em perigo (quis-se melhorar a sociedade, mas só se conseguiu suprimir liberdade ou segurança).

Os efeitos perversos, vãos, nocivos da revolução de outubro de 1917 manifestaram-se na experiência soviética.

5. A IMPREVISIBILIDADE EM LONGO PRAZO

Pode-se, com certeza, considerar ou calcular os efeitos em curto prazo de uma ação, mas seus efeitos em longo prazo são imprevisíveis. Assim, as conseqüências em cadeia de 1789 foram todas inesperadas. O Terror, depois Termidor, em seguida o Império, depois o restabelecimento dos Bourbons e, ainda mais amplamente, as conseqüências européias e mundiais da Revolução Francesa foram imprevisíveis até outubro de 1917, inclusive como foram em seguida imprevisíveis as conseqüências de outubro de 1917, desde a formação até a queda do império totalitário.

Assim, nenhuma ação está segura de ocorrer no sentido de sua intenção.

A ecologia da ação convida-nos, porém, não à inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos e à estratégia que permite modificar, até mesmo anular, a ação empreendida.

5.1 O desafio e a estratégia

Há efetivamente dois meios para enfrentar a incerteza da ação. O primeiro é totalmente consciente da aposta contida na decisão, o segundo recorre à estratégia.

Uma vez efetuada a escolha refletida de uma decisão, a plena consciência da incerteza torna-se plena consciência de uma aposta. Pascal reconhecia que sua fé provinha de um desafio. A noção de aposta deve ser generalizada quanto a qualquer fé, a fé em um mundo melhor, a fé na fraternidade ou na justiça, assim como em toda decisão ética.

A estratégia deve prevalecer sobre o programa. O programa estabelece uma seqüência de ações que devem ser executadas sem variação em um ambiente estável, mas, se houver modificação das condições externas, bloqueia-se o programa. A estratégia, ao contrário, elabora um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação, as probabilidades, as improbabilidades. O cenário pode e deve ser modificado de acordo com as informações recolhidas, os acasos, contratempos ou boas oportunidades encontradas ao longo do caminho.

Pode-mos, no âmago de nossas estratégias, utilizar curtas seqüências programadas, mas, para tudo que se efetua em ambiente instá- vel e incerto, impõe-se a estratégia. Deve, em um momento, privilegiar a prudência, em outro, a audácia e, se possível, as duas ao mesmo tempo.

A estratégia pode e deve muitas vezes estabelecer compromissos. Até onde?

Não há resposta geral para esta questão, mas, ainda aqui, há um risco, seja o da intransigência que conduzà derrota, seja o da transigência que conduzà abdicação. É na estratégia que se apresenta sempre de maneira singular, em função do contexto e em virtude do próprio desenvolvimento, o problema da dialógica entre fins e meios.

Enfim, é preciso considerar as dificuldades de uma estratégia a serviço de uma finalidade complexa, como aquela indicada pela divisa“ liberdade, igualdade, fraternidade” . Estes três termos complementares são ao mesmo tempo antagonistas; a liberdade tende a destruir a igualdade; esta, se for imposta, tende a destruir a liberdade; enfim, a fraternidade não pode ser nem decretada, nem imposta, mas incitada.

Conforme as condições históricas, uma estratégia deverá favorecer seja a liberdade, seja a igualdade, seja a fraternidade, porém, sem jamais se opor verdadeiramente aos dois outros termos.

Assim, a respostaàs incertezas da ação é constituída pela escolha refletida de uma decisão, a consciência da aposta, a elaboração de uma estratégia que leve em conta as complexidades inerentes às próprias finalidades, que possa se modificar durante a ação em função dos imprevistos, informações, mudanças de contexto e que possa considerar o eventual torpedeamento da ação, que teria tomado uma direção nociva.

Por isso, pode-se e deve-se lutar contra as incertezas da ação; pode-se mesmo superá-las em curto ou em médio prazo, mas ninguém pretende tê-las eliminado em longo prazo. A estratégia, assim como o conhecimento, continua sendo a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas.

O desejo de liquidar a Incerteza pode então nos parecer uma enfermidade própria a nossas mentes, e todo o direcionamento para a grande Certeza poderia ser somente uma gravidez psicológica.

O pensamento deve, então, armar-se e aguerrir-se para enfrentar a incerteza. Tudo que comporta oportunidade comporta risco, e o pensamento deve reconhecer as oportunidades de riscos como os riscos das oportunidades.

O abandono do progresso garantido pelas“ leis da História” não é o abandono do progresso, mas o reconhecimento de seu caráter incerto e frágil. A renúncia ao melhor dos mundos não é, de maneira alguma, a renúncia a um mundo melhor.

Na história, temos visto com freqüência, infelizmente, que o possível se torna impossível e podemos pressentir que as mais ricas possibilidades humanas permanecem ainda impossíveis de se realizar. Mas vimos também que o inesperado torna-se possível e se realiza; vimos com freqüência que o improvável se realiza mais do que o provável; saibamos, então, esperar o inesperado e trabalhar pelo improvável.

Ensinar a condição HUMANA


A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.

Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Como vimos (Capítulo I), todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente.

“Quem somos?” é inseparável de “Onde estamos?”, “De onde viemos?”, “ Para onde vamos?” Interrogar nossa condição humana implica questionar pri- meiro nossa posição no mundo. O fluxo de conhecimentos, no final do século XX, traz nova luz sobre a situação do ser humano no universo.

Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as idéias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio Homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas.

O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça. Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bio-anatômico.

As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas.

Assim, a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece“ como um rastro na areia” . Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes.

Disso decorre que, para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, bem como integrar (na educação do futuro) a contribuição inestimável das humanidades, não somente a filosofia e a história, mas também a literatura, a poesia, as artes...

1. ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO DO SER HUMANO

Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza.

1.1 A condição cósmica

Abandonamos recentemente a idéia do Universo ordenado, perfeito, eterno pelo universo nascido da irradiação, em devenir disperso, onde atuam, de modo complementar, concorrente e antagônico, a ordem, a desordem e a organização. Encontramo-nos no gigantesco cosmos em expansão, constituído de bilhões de galáxias e de bilhões e bilhões de estrelas.

Aprendemos que nossa Terra era um minúsculo pião que gira em torno de um astro errante na periferia de pequena galáxia de subúrbio. As partículas de nossos organismos teriam aparecido desde os primeiros segundos de existência de nosso cosmo há (talvez?) quinze bilhões de anos; nossos átomos de carbono formaram-se em um ou vários sóis anteriores ao nosso; nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra; estas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química: uma auto-organização viva.

A epopéia cósmica da organização, continuamente sujeita às forças da desorganização e da dispersão, é também a epopéia da religação que, sozinha, impediu que o cosmos se dispersasse ou se desvanecesse ao nascer.

No seio da aventura cósmica, no ápice do desenvolvimento prodigioso de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos a aventura à nossa maneira.

1.2 A condição física

Uma porção de substância física organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra; por meio de imersão marinha, de banhos químicos, de descargas elétricas, adquiriu Vida.

A vida é solar: todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta cuspido pelo Sol: ela é a transformação de uma torrente fotônica resultante de resplandecentes turbilhões solares.

Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena.

1.3 A condição terrestre

Pertencemos ao destino cósmico, porém estamos marginalizados: nossa Terra é o terceiro satélite de um sol destronado de seu posto central, convertido em astro pigmeu errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão...

Nosso planeta agregou-se há cinco bilhões de anos, a partir, provavelmente, de detritos cósmicos resultantes da explosão de um sol anterior, e há quatro bilhões de anos a organização viva emergiu de um turbilhão macromolecular em meio a tormentas e convulsões telúricas.

A Terra autoproduziu-se e auto-organizou-se na dependência do Sol; constituiu-se em complexo biofísico a partir do momento em que se desenvolveu a biosfera.

Somos a um só tempo seres cósmicos e terrestres. A vida nasceu de convulsões telúricas, e sua aventura correu perigo de extinção ao menos por duas vezes (no fim da era primária e durante a secundária).

Desenvolveu-se não apenas em diversas espécies, mas também em ecossistemas em que as predações e devorações constituíram a cadeia trófica de dupla face: a da vida e a da morte.

Nosso planeta erra no cosmo. Devemos assumir as conseqüências da situação marginal, periférica que é a nossa. Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica.

1.4 A condição humana

A importância da hominização é primordial à educação voltada para a condição humana, porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas, nossa condição humana. A antropologia pré-histórica mostra-nos como a hominização é uma aventura de milhões de anos, ao mesmo tempo descontínua — surgimento de novas espécies: habilis, erectus, neanderthal, sapiens, e desaparecimento das precedentes, aparecimento da linguagem e da cultura — e contínua, no sentido de que prossegue em um processo de bipedização, manualização, erguimento do corpo, cerebralização, (5) juvenescimento (o adulto que conserva os caracteres não especializados do embrião e os caracteres psicológicos da juventude), de complexificação social, processo durante o qual aparece a linguagem propriamente humana, ao mesmo tempo que se constitui a cultura, capital adquirido de saberes, de fazeres, de crenças e mitos transmitidos de geração em geração...

A hominização conduz a novo início. O hominídeo humaniza-se. Doravante, o conceito de homem tem duplo princípio; um princípio biofísico e um psico-sócio-cultural, um remetendo ao outro.

Somos originários do cosmos, da natureza, da vida, mas, devido à própria humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa consciência, tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos parece secretamente íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o mundo físico e distanciam-nos dele. O próprio fato de considerar racional e cientificamente o universo separa-nos dele. Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo.

É neste“ além” que tem lugar a plenitude da humanidade.

À maneira de ponto do holograma, trazemos no seio de nossa singularidade não somente toda a humanidade e toda a vida, mas também quase todo o cosmos, incluindo seu mistério que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza humana. Mas não somos seres que poderiam ser conhecidos e compreendidos unicamente a partir da cosmologia, da física, da biologia, da psicologia...

5. Australopiteco (crânio 508 cm3), Homo habilis (608 cm3), Homo erectus (800-1100 cm3), homem moderno (1200-1500 cm3).

2. O HUMANO DO HUMANO

2.1 Unidualidade O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e na embriaguez, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos, e é nesta hipervitalidade que o Homo sapiens é também Homo demens.

O homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas, se não dispusesse plenamente da cultura, seria um primata do mais baixo nível. A cultura acumula em si o que é conservado, transmitido, aprendido, e comporta normas e princípios de aquisição.

2.2 O circuito cérebro/mente/cultura

O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente(mind), isto é, capacidade de consciência e pensamento, sem cultura. A mente humana é uma criação que emerge e se afirma na relação cérebro-cultura.

Com o surgimento da mente, ela intervém no funcionamento cerebral e retroage sobre ele. Há, portanto, uma tríade em circuito entre cérebro / m ente / cultura, em que cada um dos termos é necessário ao outro. A mente é o surgimento do cérebro que suscita a cultura, que não existiria sem o cérebro.

2.3 O circuito razão/afeto/pulsão

Encontramos, ao mesmo tempo, uma tríade bioantropológica distinta de cérebro / mente/ cultura: decorre da concepção do cérebro triúnico de Mac Lean. (6)

O cérebro humano contém:
a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro reptiliano, fonte da agressividade, do cio, das pulsões primárias,
b)mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo,
c) o córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a envolver todas as estruturas do encéfalo e a formar os dois hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente.

Assim emerge outra face da complexidade humana, que integra a animalidade (mamífero e réptil) na humanidade e a humanidade na animalidade. (7)

As relações entre as três instâncias são não apenas complementares, mas também antagônicas, comportando conflitos bem conhecidos entre a pulsão, o coração e a razão; correlativamente a relação triúnica não obedece à hierarquia razão /afetividade / pulsão; há uma relação instável, permutante, rotativa entre estas três instâncias. A racionalidade não dispõe, portanto, de poder supremo. É uma instância concorrente e antagônica às outras instâncias de uma tríade inseparável, e é frágil: pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade ou pela pulsão. A pulsão homicida pode servir-se da maravilhosa máquina lógica e utilizar a racionalidade técnica para organizar e justificar suas ações.

6. P.D. MacLean, The triune brain, in Smith(F.Q.) ed. The Neurosciences, Second Study Program, Rockefeller University Press, Nova York, 1970.

7. Como vimos no capítulo precedente, isso leva-nos a associar estreitamente inteligência a afetividade, o que indicam claramente os trabalhos de A. Damasioi, L’erreur de Descartes, ed. O. Jacob, Paris; e de J. M. Vincent, Biologie des Passions, ed. O.Jacob, Paris.


2.4 O circuito indivíduo/sociedade/espécie

Finalmente, existe a relação triádica indivíduo / sociedade / espécie. Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas este processo deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos.

As interações entre indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura, e que retroage sobre os indivíduos pela cultura.

Indivíduo Sociedade Espécie Não se pode tornar o indivíduo absoluto e fazer dele o fim supremo desse circuito; tampouco se pode fazê-lo com a sociedade ou a espécie. No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que vive para o indivíduo e para a sociedade.

Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade. Entretanto, podemos considerar que a plenitude e a livre expressão dos indivíduos-sujeitos constituem nosso propósito ético e político, sem, entretanto, pensarmos que constituem a própria finalidade da tríade indivíduo / sociedade/ espécie. A complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencerà espécie humana.

3. UNITAS MULTIPLEX: UNIDADE E DIVERSIDADE HUMANA

Cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana.

A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens.

A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno.

A educação deverá ilustrar este princípio de unidade/diversidade em todas as esferas.

3.1 A esfera individual

Na esfera individual, existe unidade/diversidade genética. Todo ser humano traz geneticamente em si a espécie humana e compreende geneticamente a própria singularidade anatômica, fisiológica. Há unidade/diversidade cerebral, mental, psicológica, afetiva, intelectual, subjetiva: todo ser humano carrega, de modo cerebral, mental, psicológico, afetivo, intelectual e subjetivo, os caracteres fundamentalmente comuns e ao mesmo tempo possui as próprias singularidades cerebrais, mentais, psicológicas, afetivas, intelectuais, subjetivas...

3.2 A esfera social

Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas (todas diversas a partir de uma estrutura de dupla articulação comum, o que nos torna gêmeos pela linguagem e separados pelas línguas), das organizações sociais e das culturas.

3.3 Diversidade cultural e pluralidade de indivíduos

Diz-se justamente a cultura, diz-se justamente as culturas.

A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social.

Não há sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas. As técnicas podem migrar de uma cultura para outra, como foi o caso da roda, da atrelagem, da bússola, da imprensa. Foi assim também com determinadas crenças religiosas, depois com idéias leigas que, nascidas em uma cultura singular, puderam se universalizar. Mas existe em cada cultura um capital específico de crenças, idéias, valores, mitos e, particularmente, aqueles que unem uma comunidade singular a seus ancestrais, suas tradições, seus mortos.

Os que vêem a diversidade das culturas tendem a minimizar ou a ocultar a unidade humana; os que vêem a unidade humana tendem a considerar como secundária a diversidade das culturas. Ao contrário,é apropriado conceber a unidade que assegure e favoreça a diversidade, a diversidade que se inscreve na unidade.

O duplo fenômeno da unidade e da diversidade das culturas é crucial.

A cultura mantém a identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico.

As culturas são aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram nelas não somente os saberes e técnicas, mas também idéias, costumes, ali- mentos, indivíduos vindos de fora. As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras. Verificam-se também mestiçagens culturais bem-sucedidas, como as que produziram o flamenco, a música da América Latina, or aï*.

* N. T. Música popular moderna da Argélia. (Le Nouveau Petit Robert. Dictionnaires Le Robert, 1994).

Ao contrário, a desintegração de uma cultura sob o efeito destruidor da dominação técnico-civilizacional é uma perda para toda a humanidade, cuja diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros.

O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Disse-mos que todo ser humano, tal como o ponto de um holograma, traz em si o cosmo. Devemos ver também que todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poli existência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis.

Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes...

3.4 Sapiens/demens

O século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas:

sapiense demens (sábio e louco)
fabere ludens (trabalhador e lúdico)
empiricuse imaginarius (empírico e imaginário)
economicuse consumans (econômico e consumista)
prosaicuse poeticus (prosaico e poético)


O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). O homem prosaico é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do amor, do êxtase. O amor é poesia.

Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana, o fim de um amor devolve-nos à prosa.

Assim, o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte.

Por toda parte, uma atividade técnica, prática, intelectual testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônias, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios,“ consumismos” , testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens.

As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião.

Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiense Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.

3.5 Homo complexus

Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais.

Tudo isso constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio;é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas Idéias, mas que duvida dos deuses e critica as Idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. E quando, na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros.

A loucura é também um problema central do homem e não apenas seu dejeto ou sua doença. O tema da loucura humana foi evidente para a filosofia da Antiguidade, a sabedoria oriental, os poetas de todos os continentes, os moralistas, Erasmo, Montaigne, Pascal, Rousseau. Volatilizou-se não somente na euforia ideológica humanista que destinou o homem a reger o universo, mas também nas ciências humanas e na filosofia.

A demência não levou a espécie humana à extinção (só as energias nucleares liberadas pela razão científica e só o desenvolvimento da racionalidade técnica dependente da biosfera poderão conduzi-la ao desaparecimento).

Entretanto, tanto tempo parece ter-se perdido, desperdiçado com ritos, cultos, delírios, decorações, danças e muitas ilusões...

A despeito disso, o desenvolvimento técnico, em seguida o científico, foi fulgurante; as civilizações produziram filosofia e ciência; a Humanidade dominou a Terra.

Isso significa que os progressos da complexidade se fazem ao mesmo tempo, apesar, com e por causa da loucura humana. A dialógica sapiens/demens foi criadora e também destruidora; o pensamento, a ciência, as artes foram irrigadas pelas forças profundas da afetividade, por sonhos, angústias, desejos, medos, esperanças. Nas criações humanas há sempre uma dupla pilotagem sapiens/demens. Demens inibiu, mas também favoreceu sapiens.

Platão já havia observado que Diké, a lei sábia, é filha de Übris, o descomedimento. Tal furor cego destrói as colunas de um templo de servidão, como a tomada da Bastilha e, ao contrário, tal culto da Razão nutre a guilhotina.

A possibilidade do gênio decorre de que o ser humano não é completamente prisioneiro do real, da lógica (neocórtex), do código genético, da cultura, da sociedade. A pesquisa, a descoberta avançam no vácuo da incerteza e da incapacidade de decidir. O gênio brota na brecha do incontrolável, justamente onde a loucura ronda. A criação brota da união entre as profundezas obscuras psicoafetivas e a chama viva da consciência.

Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o Destino multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis.

Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra...

Ensinar a identidade TERRENA

Apenas o sábio mantém o todo constantemente na mente, jamais esquece o mundo, pensa e age em relação ao cosmo.”
Groethuysen

Pela primeira vez, o homem compreendeu realmente que é um habitante do planeta e, talvez, deva pensar ou agir sob novo aspecto, não somente sob o de indivíduo, família ou gênero, Estado ou grupo de Estados, mas também sob o aspecto planetário.”
Vernadski

Como os cidadãos do novo milênio poderiam refletir sobre seus próprios problemas e aqueles do seu tempo? É preciso que compreendam tanto a condição humana no mundo como a condição do mundo humano, que, ao longo da história moderna, se tornou condição da era planetária. Entramos a partir do século XVI na era planetária, e encontramo-nos desde o final do século XX na fase da mundialização.

A mundialização, no estágio atual da era planetária, significa primeiramente, como disse o geógrafo Jacques Levy:“o surgimento de um objeto novo, o mundo como tal”. Porém, quanto mais somos envolvidos pelo mundo, mais difícil é para nós apreendê-lo.

Na era das telecomunicações, da informação, da Internet, estamos submersos na complexidade do mundo, as incontáveis informações sobre o mundo sufocam nossas possibilidades de inteligibilidade.

Daí surge a esperança de destacar um problema vital por excelência, que subordinaria os demais problemas vitais. Mas este problema vital é constituído pelo conjunto de problemas vitais, ou seja, a intersolidariedade complexa de problemas, antagonismos, crises, processos descontrolados. O problema planetário é um todo que se nutre de ingredientes múltiplos, conflitivos, nascidos de crises; ele os engloba, ultrapassa-os e nutre-os de volta.

O que agrava a dificuldade de conhecer nosso Mundo é o modo de pensar que atrofiou em nós, em vez de desenvolver, a aptidão de contextualizar e de globalizar, uma vez que a exigência da era planetária é pensar sua globalidade, a relação todo-partes, sua multidimensionalidade, sua complexidade o que nos remete à reforma do pensamento, tratada no capítulo II, necessária para conceber o contexto, o global, o multidimensional, o complexo.

É a complexidade (a cadeia produtiva/destrutiva das ações mútuas das partes sobre o todo e do todo sobre as partes) que apresenta problema.

Necessitamos, desde então, conceber a insustentável complexidade do mundo no sentido de que é preciso considerar a um só tempo a unidade e a diversidade do processo planetário, suas complementaridades ao mesmo tempo que seus antagonismos.

O planeta não é um sistema global, mas um turbilhão em movimento, desprovido de centro organizador. O planeta exige um pensamento policêntrico capaz de apontar o universalismo, não abstrato, mas consciente da unidade / diversidade da condição humana; um pensamento policêntrico nutrido das culturas do mundo.

Educar para este pensamento é a finalidade da educação do futuro, que deve trabalhar na era planetária, para a identidade e a consciência terrenas.

1. A ERA PLANETÁRIA

As ciências contemporâneas ensinam-nos que estaríamos a 15 bilhões de anos de uma catástrofe indizível a partir da qual se criou o cosmo, talvez cinco milhões de anos desde que começou a aventura da hominização, que nos teria diferenciado dos outros antropóides, a cem mil anos do surgimento do Homo sapiense a dez mil anos após o nascimento das civilizações históricas, e que entramos no início do terceiro milênio da era dita cristã. A história humana começou por uma diáspora planetária que afetou todos os continentes, em seguida entrou, nos tempos modernos, na era planetária da comunicação entre os diversos fragmentos da diáspora humana.

A diáspora da humanidade não produziu nenhuma cisão genética: pigmeus, negros, amarelos, índios, brancos vêm da mesma espécie, possuem os mesmos caracteres fundamentais de humanidade. Mas ela levou à extraordinária diversidade de línguas, culturas, destinos, fontes de inovação e de criação em todos os domínios. A riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte de sua criatividade está em sua unidade geradora.

No final do século XV europeu, a China dos Ming e a Índia mongol são as mais importantes civilizações do Globo. O Islamismo, na Ásia e na África, é a religião mais expandida da Terra. O Império Otomano, que da Ásia se estendeu pela Europa Oriental, aniquilou Bizâncio e ameaçou Viena, torna-se uma grande potência da Europa. O Império dos Incas e o Império dos Astecas dominam nas Américas e Cuzco, assim como Tenochtitlán, ultrapassa em população, monumentos e esplendor as cidades de Madri, Lisboa, Paris, Londres capitais de jovens e pequenas nações do oeste europeu.

Entretanto, a partir de 1492, são estas jovens e pequenas nações que se lançam à conquista do Globo e, por meio de aventuras, guerras e morte, engendram a era planetária que, desde então, leva os cinco continentes à comunicação para o melhor e o pior. A dominação do ocidente europeu sobre o resto do mundo provoca catástrofes de civilização especialmente nas Américas, destruição irremediável e conduz a escravidão terrível.

Assim, a era planetária abre-se e desenvolve-se na e pela violência, pela destruição, pela escravidão e pela exploração feroz das Américas e da África. Os bacilos e os vírus da Eurásia invadem as Américas provocando hecatombes, semeando varíola, herpes, gripe, tuberculose, enquanto levam da América o treponema da sífilis que contamina de sexo em sexo até Shangai.

Os europeus introduzem em suas terras milho, batata, feijão, tomate, mandioca, batata-doce, cacau, tabaco vindos da América. Levam para a América carneiros, gado bovino, cavalos, cereais, vinhedos, oliveiras e plantas tropicais, arroz, inhame, café, cana-de-açúcar.

A planetarização desenvolve-se pelo aporte da civilização européia aos continentes, com armas, técnicas, concepções em todos os seus entrepostos, pedágios, zonas de penetração. A indústria e a técnica atingem um vulto nunca antes conhecido por alguma civilização. O progresso econômico, o desenvolvimento das comunicações, a inclusão dos continentes subjugados no mercado mundial determinam formidáveis movimentos de população, que vão ampliar o crescimento demográfico (8) generalizado. Na segunda metade do século XIX, 21 milhões de europeus atravessaram o Atlântico em direção às duas Américas. Produziram-se fluxos migratórios também na Ásia, onde os chineses se instalam como comerciantes no Sião, em Java e na península da Malásia, embarcam para a Califórnia, para a Colúmbia Britânica, para a Nova Gales do Sul e para Polinésia, enquanto os hindus se fixam em Natal* e na África Oriental.

8. Em um século, a Europa passou de 190 para 423 milhões de habitantes; o Globo, de 900 milhões para 1,6 bilhão.

* N. T. Natal, província da África do Sul. (Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse. Editora Larousse do Brasil. 1987).

A planetarização provoca, no século XX, duas guerras mundiais, duas crises econômicas mundiais e, após 1989, a generalização da economia liberal denominada mundialização. A economia mundial é cada vez mais um todo interdependente: cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. O planeta encolhe. Foram precisos três anos para que Magellan desse a volta ao mundo por mar (1519-22). Eram necessários ainda 80 dias para que um intrépido viajante do século XIX, utilizando estradas, trem e navegação a vapor, desse a volta ao mundo. No final do século XX, o avião a jato circunda-o em 24 horas.

E, principalmente, tudo está instantaneamente presente, de um ponto do planeta ao outro, pela televisão, telefone, fax, Internet...

O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isto se verifica não apenas para as nações e povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto de um holograma contém a informação do todo do qual faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo.

Por isso, o europeu, por exemplo, ao acordar cada manhã, ouve uma rádio japonesa e recebe notícias do mundo: erupções vulcânicas, terremotos, golpes de Estado, conferências internacionais chegam a ele, enquanto toma chá do Ceilão, da Índia ou da China, se não estiver tomando um moka da Etiópia ou um arábica da América Latina; veste camiseta, cueca e camisa de algodão do Egito ou da Índia; usa paletó e calças de lã da Austrália, fabricada em Manchester e, depois, em Roubaix-Tourcoing ou, então, blusão de couro chinês com jeans estilo americano. Seu relógio é suíço ou japonês. Seus óculos são feitos de casco de tartaruga equatorial. Pode encontrar em sua mesa, durante o inverno, morangos e cerejas da Argentina ou do Chile, vagens frescas vindas do Senegal, abacates ou abacaxis da África, melões de Guadalupe. Dispõe de garrafas de rum da Martinica, de vodca russa, de tequila mexicana, de bourbon americano. Pode ouvir em casa uma sinfonia alemã regida por um maestro coreano, a não ser que assista em sua tela de vídeo à La Bohème com a “Negra”, Barbara Hendricks, no papel de Mimi e o “Espanhol”, Plácido Domingo, no de Rodolfo.

Enquanto o europeu está neste circuito planetário de conforto, grande número de africanos, asiáticos e sul-americanos acha-se em um circuito planetário de miséria. Sofrem no cotidiano as flutuações do mercado mundial, que afetam as ações do cacau, do café, do açúcar, das matérias-primas que seus países produzem. Foram expulsos do campo por causa dos processos mundializados provenientes do Ocidente, principalmente os progressos da monocultura industrial; camponeses auto-suficientes tornaram-se suburbanos em busca de salário; suas necessidades agora são traduzidas em termos monetários.

Aspiram à vida de bem-estar com a qual os fazem sonhar os comerciais e os filmes do Ocidente. Utilizam recipientes de alumínio ou de plástico, bebem cerveja ou Coca-Cola. Dormem sobre restos recuperados de espuma de polietileno e usam camisetas com estampas americanas. Dançam ao som de músicas sincréticas cujos ritmos tradicionais chegam em orquestrações vindas da América. Dessa maneira, para o melhor e o pior, cada ser humano, rico ou pobre, do Sul ou do Norte, do Leste ou do Oeste, traz em si, sem saber, o planeta inteiro. A mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente e onipresente.

A mundializaçãoé sem dúvida unificadora, mas é preciso acrescentar imediatamente que é também conflituosa em sua essência. A unificação mundializante faz-se acompanhar cada vez mais pelo próprio negativo que ela suscita, pelo efeito contrário: a balcanização. O mundo, cada vez mais, torna-se uno, mas torna-se, ao mesmo tempo, cada vez mais dividido.

Paradoxalmente, foi a própria era planetária que permitiu e favoreceu o parcelamento generalizado dos Estados-nações; de fato, o pedido de emancipação da nação é estimulado por um movimento de ressurgência da identidade ancestral, que ocorre em reação à corrente planetária de homogeneização civilizacional, e esta demanda é intensificada pela crise generalizada do futuro.

Os antagonismos entre nações, religiões, entre laicização e religião, modernidade e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, Oriente e Ocidente, Norte e Sul nutrem-se uns aos outros, e a eles mesclam-se interesses estratégicos e econômicos antagônicos das grandes potências e das multinacionais voltadas para o lucro. São todos estes antagonismos que estão presentes nas zonas ao mesmo tempo de interferências e de fratura, como a grande área sísmica do globo que se inicia na Armênia/ Azerbaijão, atravessa o Oriente Médio e vai até o Sudão. Exasperam-se onde existem religiões e etnias misturadas, fronteiras arbitrárias entre Estados exasperação de rivalidades e negações de toda ordem, como no Oriente Médio.

Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido planetárioúnico; seus fragmentos ficaram isolados, eriçados e intercombatentes. Os Estados dominam o cenário mundial como titãs brutos e ébrios, poderosos e impotentes. Ao mesmo tempo, a onda técnico-industrial sobre o globo tende a suprimir muitas das diversidades humanas, étnicas e culturais. O próprio desenvolvimento criou mais problemas do que soluções e conduziu à crise profunda de civilização que afeta as prósperas sociedades do Ocidente.

Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o desenvolvimento chega a um ponto insustentável, inclusive o chamado desenvolvimento sustentável.

É necessária uma noção mais rica e complexa do desenvolvimento, que seja não somente material, mas também intelectual, afetiva, moral...

O século XX não saiu da idade de ferro planetária; mergulhou nela.

2. O LEGADO DO SÉCULO XX

O século XX foi o da aliança entre duas barbáries: a primeira vem das profundezas dos tempos e traz guerra, massacre, deportação, fanatismo.

A segunda, gélida, anônima, vem do âmago da racionalização, que só conhece o cálculo e ignora o indivíduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma, e que multiplica o poderio da morte e da servidão técnico-industriais.

Para ultrapassar esta era de barbárie, é preciso antes de tudo reconhecer sua herança. Tal herança é dupla, a um só tempo herança de morte e herança de nascimento.

2.1 A herança de morte

O século XX pareceu dar razão à fórmula atroz segundo a qual a evolução humana é o crescimento do poderio da morte. A morte introduzida pelo século XX não é somente a de dezenas de milhões de mortos das duas guerras mundiais e dos campos de extermínio nazistas e soviéticos; é também a de dois novos poderes de morte.

2.1.1 As armas nucleares

O primeiro é o da possibilidade de extinção global de toda a humanidade pelas armas nucleares. Esta ameaça não foi dissipada no limiar do terceiro milênio; ao contrário, cresce com a disseminação e a miniaturização da bomba. O potencial de auto-aniquilamento acompanha daqui em diante a marcha da humanidade.

2.1.2 Os novos perigos

O segundo é a possibilidade de morte ecológica. Desde os anos 70, descobrimos que os dejetos, as emanações, as exalações de nosso desenvolvimento técnico-industrial urbano degradam a biosfera e ameaçam envenenar irremediavelmente o meio vivo ao qual pertencemos: a dominação desenfreada da natureza pela técnica conduz a humanidade ao suicídio.

Por outro lado, as forças de morte que acreditávamos em via de extinção se rebelaram; o vírus da aids invadiu-nos - o primeiro vírus desconhecido que surge —, enquanto bactérias que acreditávamos eliminadas voltam mais resistentes aos anti-bióticos. Dessa forma, a morte reintroduziu-se com virulência em nossos corpos, que acreditávamos estarem daqui para a frente asseptizados.

Enfim, a morte ganhou espaço em nossas almas. As forças autodestrutivas, latentes em cada um de nós, foram particularmente ativadas, sob o efeito de drogas pesadas como a heroína, por toda parte onde se multiplica e cresce a solidão e a angústia.

Assim a ameaça paira sobre nós com a arma termonuclear, envolve-nos com a degradação da biosfera, potencializa-se em cada um de nossos abraços; esconde-se em nossas almas com o chamado mortal das drogas.

2.2 A morte da modernidade

A civilização nascida no Ocidente, soltando suas amarras com o passado, acreditava dirigir-se para o futuro de progresso infinito, movido pelos avanços conjuntos da ciência, da razão, da história, da economia, da democracia.

Entretanto, aprendemos com Hiroshima que a ciência era ambivalente; vimos a razão retroceder e o delírio staliniano colocar a máscara da razão histórica; vimos que não havia leis da História que guiassem irresistivelmente em direção ao porvir radiante; vimos que em parte alguma o triunfo da democracia estava assegurado em definitivo; vimos que o desenvolvimento industrial podia causar danos à cultura e poluições mortais; vimos que a civilização do bem-estar podia gerar ao mesmo tempo mal-estar. Se a modernidade é definida como fé incondicional no progresso, na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta.

2.3 A esperança

Se é verdade que o gênero humano, cuja dialógica cérebro/ mente não está encerrada, possui em si mesmo recursos criativos inesgotáveis, pode-se então vislumbrar para o terceiro milênio a possibilidade de nova criação cujos germes e embriões foram trazidos pelo século XX: a cidadania terrestre. E a educação, que é ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo, encontra-se no cerne dessa nova missão.

2.3.1 A contribuição das contracorrentes

O ocaso do século XX deixou como herança contracorrentes regeneradoras.

Freqüentemente, na história, contracorrentes suscitadas em reação às correntes dominantes podem-se desenvolver e mudar o curso dos acontecimentos. Devemos considerar:

•a contracorrente ecológica que, com o crescimento das degradações e o surgimento de catástrofes técnicas/industriais, só tende a aumentar;

•a contracorrente qualitativa que, em reação à invasão do quantitativo e da uniformização generalizada, se apega à qualidade em todos os campos, a começar pela qualidade de vida;

•a contracorrente de resistência à vida prosaica puramente utilitária, que se manifesta pela busca da vida poética, dedicada ao amor, à admiração, à paixão, à festa;

•a contracorrente de resistênciaà primazia do consumo padronizado, que se manifesta de duas maneiras opostas: uma pela busca da intensidade vivida (“consumismo” ); a outra pela busca da frugalidade e da temperança;

•a contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro;

•a contracorrente, também tímida, que, em reação ao desencadeamento da violência, nutre éticas de pacificação das almas e das mentes.

Pode-se igualmente pensar que todas as aspirações que nutriram as grandes esperanças revolucionárias do século XX, mas que foram frustradas, poderão renascer na forma de nova busca de solidariedade e de responsabilidade.

Poder-se-ia esperar, igualmente, que a necessidade de volta às raízes, que mobiliza hoje fragmentos dispersos da humanidade e provoca a vontade de assumir identidades étnicas ou nacionais, pudesse aprofundar-se e ampliar-se, sem negar-se a si mesmas, nesta volta às raízes, ao seio da identidade humana de cidadãos da Terra-pátria.

Pode-se esperar uma política a serviço do ser humano, inseparável da política de civilização, que abriria o caminho para civilizar a Terra como casa e jardim comuns da humanidade.

Todas essas correntes prometem intensificar-se e ampliar-se ao longo do século XXI e constituir múltiplos focos de transformação, mas a verdadeira transformação só poderia ocorrer com a intertransformação de todos, operando assim uma transformação global, que retroagiria sobre as transformações individuais.

2.3.2 No jogo contraditório dos possíveis

Uma das condições fundamentais para a evolução positiva seria as forças emancipadoras inerentes à ciência e à técnica poderem superar as forças de morte e de servidão. Os desenvolvimentos da tecnociência são ambivalentes.

Encolheram a Terra e deram condição imediata de comunicação a todos os pontos do globo, proporcionaram meios para alimentar todo o planeta e para assegurar a todos os seus habitantes um mínimo de bem-estar, mas, ao contrário, criaram também as piores condições de morte e de destruição.

Os seres humanos servem-se das máquinas, que escravizam energia, mas são, ao mesmo tempo, escravizados por elas. A saga de ficção científica Hypérion, de Dan Simmons, supõe que, em um milênio do futuro, as inteligências artificiais (I.A.) terão domesticado os humanos, sem que estes tenham a consciência disso, e prepararão seu extermínio.

O romance descreve peripécias surpreendentes, ao final das quais um híbrido de humano e I.A., portador da alma do poeta Keats, anuncia nova sabedoria. Este é o problema crucial que se apresenta logo no início do século XX: ficaremos submissos à tecnosfera ou saberemos viver em simbiose com ela?

As possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento das biotecnologias são igualmente prodigiosas para o melhor e para o pior. A genética e a manipulação molecular do cérebro humano permitirão normalizações e padronizações jamais alcançadas pelas doutrinações e propagandas sobre a espécie humana.

Mas permitirão a eliminação de taras deformadoras, a medicina preditiva, o controle, pela mente, do próprio cérebro.

A amplitude e a aceleração das transformações atuais parecem pressagiar mutação ainda mais considerável do que aquela que fez as pequenas sociedades arcaicas de caçadores e coletadores sem Estado, sem agricultura nem cidade, passarem ao neolítico, às sociedades históricas que há oito milênios se desenvolvem no planeta.

Podemos também contar com as inesgotáveis fontes do amor humano.

Certamente o século XX sofreu terrivelmente de carência afetiva, de indiferença, de dureza e de crueldade. Mas produziu também o excesso de amor consagrado a mitos enganosos, ilusões, falsas divindades ou que se petrifica em fetichismos menores como uma coleção de selos.

Podemos igualmente confiar nas possibilidades cerebrais do ser humano ainda em grande parte inexploradas; a mente humana poderia desenvolver aptidões ainda desconhecidas pela inteligência, pela compreensão, pela criatividade. Como as possibilidades sociais estão relacionadas com as possibilidades cerebrais, ninguém pode garantir que nossas sociedades tenham esgotado suas possibilidades de aperfeiçoamento e de transformação e que tenhamos chegado ao fim da História.

Podemos esperar progresso nas relações entre humanos, indivíduos, grupos, etnias, nações. A possibilidade antropológica, sociológica, cultural, espiritual de progresso restaura o princípio da esperança, mas sem certe- za“ científica” , nem promessa“ histórica”.

É uma possibilidade incerta que depende muito da tomada de consciência, da vontade, da coragem, da oportunidade... Do mesmo modo, as tomadas de consciências tornaram-se urgentes e primordiais.

Aquilo que porta o pior perigo traz também as melhores esperanças: é a própria mente humana, e é por isso que o problema da reforma do pensamento tornou-se vital.

3. A IDENTIDADE E A CONSCIÊNCIA TERRENA

A união planetária é a exigência racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência e um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à nossa Terra, considerada como primeira e última pátria. Se a noção de pátria comporta identidade comum, relação de filiação afetiva à substância tanto materna como paterna (inclusa no termo feminino-masculino de pátria), enfim, uma comunidade de destino, então podemos fazer avançar a noção Terra-pátria.

Como indicamos no Capítulo III, temos todos uma identidade genética, cerebral, afetiva comum em nossas diversidades individuais, culturais e sociais. Somos produto do desenvolvimento da vida da qual a Terra foi matriz e nutriz. Enfim, todos os humanos, desde o século XX, vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e de morte e estão unidos na mesma comunidade de destino planetário.

Por isso, é necessário aprender a“ estar aqui” no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; é o que se aprende somente nas e por meio de culturas singulares.

Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemo-nos dedicar não só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender.

Devemos inscrever em nós:

•a consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversidade;

•a consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera): reconhecer nossa união consubstancial com a biosfera conduz ao abandono do sonho prometéico do domínio do universo para nutrir a aspiração de convivibilidade sobre a Terra;

•a consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solidariedade para com os filhos da Terra;

•a consciência espiritual da condição humana que decorre do exercício complexo do pensamento e que nos permite, ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente.

É necessário ensinar não mais a opor o universal às pátrias, mas a unir concentricamente as pátrias—familiares, regionais, nacionais européias e a integrá-las no universo concreto da pátria terrestre.

Não se deve mais continuar a opor o futuro radiante ao passado de servidão e de superstições. Todas as culturas têm virtudes, experiências, sabedorias, ao mesmo tempo que carências e ignorâncias.

É no encontro com seu passado que um grupo humano encontra energia para enfrentar seu presente e preparar seu futuro. A busca do futuro melhor deve ser complementar, não mais antagônica, ao reencontro com o passado.

Todo ser humano, toda coletividade deve irrigar sua vida pela circulação incessante entre o passado, no qual reafirma a identidade ao restabelecer o elo com os ascendentes, o presente, quando afirma suas necessidades, e o futuro, no qual projeta aspirações e esforços.

Nesse sentido, os Estados podem desempenhar papel decisivo, com a condição de que aceitem, em razão do próprio interesse, abandonar sua soberania absoluta acerca de todos os grandes problemas de utilidade comum e sobretudo os problemas de vida ou de morte que ultrapassam sua competência isolada.

De toda maneira, a era de fecundidade dos Estados-nações dotados de poder absoluto está encerrada, o que significa que é necessário não os desintegrar, mas respeitá-los, integrando-os em conjuntos e fazendo-os respeitar o conjunto do qual fazem parte.

O mundo confederado deve ser policêntrico e acêntrico, não apenas política, mas também culturalmente. O Ocidente que se provincializa sente a necessidade do Oriente, enquanto o Oriente quer permanecer ocidentalizando-se.

O Norte desenvolveu o cálculo e a técnica, mas perdeu a qualidade de vida, enquanto o Sul, tecnicamente atrasado, cultiva ainda qualidades de vida.

Uma dialógica deve, de agora em diante, complementar Oriente e Ocidente, Norte e Sul.

A religação deve substituir a disjunção e apelarà “ sim-biosofia” , sabedoria de viver junto. A unidade, a mestiçagem e a diversidade devem-se desenvolver contra a homogeneização e o fechamento.

A mestiçagem não é apenas a criação de novas diversidades a partir do encontro; torna-se, no processo planetário, produto e produtor de religação e de unidade. Introduz a complexidade no âmago da identidade mestiça (cultural ou racial). Com certeza, cada qual pode e deve, na era planetária, cultivar a poliidentidade, que permite integrar a identidade familiar, a identidade regional, a identidade étnica, a identidade nacional, a identidade religiosa ou filosófica, a identidade continental e a identidade terrena. Mas o mestiço, ele sim, pode encontrar nas raízes de sua poliidentidade a bipolaridade familiar, a étnica, a nacional, mesmo a continental, permitindo constituir nele a identidade complexa plenamente humana.

O duplo imperativo antropológico impõe-se: salvar a unidade humana e salvar a diversidade humana. Desenvolver nossas identidades a um só tempo concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa pátria, a de nossa comunidade de civilização, enfim, a de cidadãos terrestres.

Estamos comprometidos, na escala da humanidade planetária, na obra essencial da vida, que é resistir à morte. Civilizar e solidarizar a Terra, transformar a espécie humana em verdadeira humanidade torna-se o objetivo fundamental e global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade.

A consciência de nossa humanidade nesta era planetária deveria conduzir-nos à solidariedade e à comiseração recíproca, de indivíduo para indivíduo, de todos para todos. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão planetária.

Ver Capítulo VI.