Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Homem e Linguagem (1966) - Hans-Georg Gadamer

1. É de Aristóteles a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela capacidade de pensar. A palavra grega lógos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e sobretudo: linguagem. Em certa passagem, Aristóteles estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o lógos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E Aristóteles acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto... e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: É somente pela capacidade de se comunicar, que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem.

1 Política, A 2, 1253 a 9s.

2. Em geral supomos que essa afirmação tão significativa e convincente garantiu desde o início um lugar privilegiado ao fenômeno da linguagem no pensamento sobre a essência do homem. O que é mais convincente do que afirmar que a linguagem dos animais, se quisermos chamar assim o seu modo de entender-se, é algo muito diferente da linguagem humana, na qual representamos e comunicamos um mundo objetivo? E isso por meio de signos que não são fixos como os signos de expressão dos animais, mas variáveis, não apenas no sentido de que existem diversos idiomas, mas que, dentro do mesmo idioma, as mesmas expressões podem designar algo diferente e expressões diferentes podem designar o mesmo.

3. Na verdade, a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do Ocidente. É bem verdade que sempre chamou a atenção que na história da criação, narrada no Antigo Testamento, Deus outorgou ao primeiro homem o domínio do mundo, ao lhe permitir nomear os seres do modo que melhor lhe conviesse. Também a história da Torre de Babel atesta o significado fundamental da linguagem para a vida do homem. Mesmo assim, foi justamente a tradição religiosa do Ocidente cristão que acabou paralisando de certo modo o pensamento sobre a linguagem. De fato foi só a época do Iluminismo que se colocou de maneira nova a pergunta pela origem da linguagem. Deu-se um grande passo quando se deixou de responder a questão da origem da linguagem sob a perspectiva do relato da criação, mas a partir da natureza do homem. Pois só assim tornou-se
inevitável um passo adiante, ou seja, admitir que a naturalidade da linguagem não permite colocar a questão de um estado anterior do homem, destituído de linguagem, e conseqüentemente a questão da origem da linguagem. Herder e W. von Humboldt caracterizaram a humanidade originária da linguagem como linguagem originária do homem, desenvolvendo o significado fundamental desse fenômeno para a visão humana do mundo. A diversidade da estrutura da linguagem humana foi o campo de investigação do antigo ministro da cultura, o sábio de Tege retirado da vida pública que pela obra produzida em sua velhice tornou-se o fundador da moderna ciência da linguagem.

4. A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade - que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura - um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermânicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei.

A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distancia de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar.

5. A linguagem não é um dos meios pelos quais a consciência se comunica com o mundo. Não representa um terceiro instrumento, ao lado do signo e da ferramenta - embora esses dois certamente façam parte da caracterização essencial do homem. A linguagem não é nenhum instrumento. nenhuma ferramenta. Pois uma das características essenciais do instrumento é dominarmos seu uso, e isso significa que lançamos mão e nos desfazemos dele assim que prestou seu serviço. Não acontece o mesmo quando pronunciamos as palavras disponíveis de um idioma e depois de utilizadas deixamos que retornem ao vocabulário comum de que dispomos. Esse tipo
de analogia é falso porque jamais nos encontramos como consciência diante do mundo para num estado desprovido de linguagem lançarmos mão do instrumental do entendimento. Pelo contrário, em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nos próprios. Aprender a falar não significa ser introduzido na arte de designar o mundo que nos é familiar e conhecido pelo uso de um instrumentário já dado, mas conquistar a familiaridade e o conhecimento do próprio mundo, assim como ele se nos apresenta.

6. Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas idéias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala2. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se; uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem.

2 Analíticos Posteriores, B 19, 99 b 35s.

7. Em todos os nossos pensamentos e conhecimentos sempre já fomos precedidos pela interpretação do mundo feita na linguagem, e essa progressiva integração no mundo chama-se crescer. Nesse sentido, a linguagem representa o verdadeiro vestígio de nossa finitude. A linguagem já sempre nos ultrapassou. O parâmetro para medir seu ser não é a consciência do indivíduo. Não existe consciência individual que pudesse conter sua linguagem. Mas como existe então a linguagem? Com certeza não sem a consciência individual. Mas também não pela mera reunião de muitas consciências individuais.

8. Nenhum indivíduo, quando fala, tem uma verdadeira consciência de sua fala. São muito raras as vezes em que alguém está consciente da linguagem que fala. Quando temos em mente dizer algo e nos vem à memória uma palavra que nos faz hesitar, que soa estranha ou cômica, nos perguntamos: "Pode-se dizer isso?" Nesse momento, a linguagem que falamos torna-se consciente, por não fazer o que é o seu próprio. E o que é o seu próprio? Creio que podemos distinguir três aspectos nessa questão.

9. O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à linguagem. A linguagem viva não tem consciência de sua própria estrutura, gramática, sintaxe etc., portanto, de tudo aquilo que a ciência da linguagem tematiza. Uma das perversões típicas do natural aparece quando a escola moderna introduz a gramática e a sintaxe em sua própria língua materna em lugar de introduzi-la numa língua morta como o latim. Exige-se de todos um gigantesco esforço de abstração para tomar consciência expressa da gramática do idioma que se domina enquanto língua materna.

A concretização efetiva da linguagem faz com que essa desapareça detrás daquilo que nela se diz. Uma bela experiência disso, feita por todos nós, dá-se no aprendizado de uma língua estrangeira. Pensemos nas frases paradigmáticas usadas nos manuais e cursos de idiomas. Sua tarefa é fazer
com que se tome consciência expressa de um determinado fenômeno de linguagem. Antigamente, quando ainda se acreditava na tarefa de abstração materializada no aprendizado da gramática e da sintaxe de uma língua, figuravam frases absurdas, falando sobre César ou sobre o Tio Carlos, por exemplo. A tendência moderna de transmitir informações interessantes sobre o país estrangeiro por via dessas frases paradigmáticas tem um efeito colateral indesejado, a saber, à medida que o conteúdo da frase ganha interesse a sua função paradigmática se obscurece. Quanto mais vivo o
ato de linguagem, tanto menos consciência temos dele. Assim, o esquecimento de si próprio da linguagem nos mostra que o seu verdadeiro sentido é o que nela se diz, o que constitui o mundo comum, onde vivemos e onde se insere também a grande corrente da tradição, que nos alcança por meio da literatura de línguas estrangeiras, vivas ou mortas. O verdadeiro sentido da linguagem é aquilo que adentramos quando a ouvimos: o dito.

10. A meu ver, um segundo traço essencial do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem fala uma língua que ninguém mais compreende simplesmente não faia. Falar significa falar a alguém. A palavra quer ser palavra que vai ao encontro de alguém. Mas isso não significa apenas que a coisa em questão, referida pela palavra, se apresente diante de mim, mas que se apresenta também àquele a quem eu falo.

11. Nesse sentido, o falar não pertence à esfera do eu, mas à esfera do nós. Assim, damos razão a Ferdinand Ebner, por ter acrescentado o subtítulo de Pneumatologische Fragmente(Fragmentos pneumatológicos) ao seu importante escrito Das Wort und die geistigen Realitäten (A palavra e as realidades espirituais). Pois a realidade espiritual da linguagem é a realidade do Pneuma, do espírito, que une eu e tu. Como já se observou desde há muito, a realidade do falar consiste no diálogo. Em todo diálogo, porém, vige um espírito; bom ou mau, espírito de enrijecimento, paralisação ou um espírito de comunicação e intercâmbio fluente entre eu e tu.

12. Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo3. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico4 ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a
consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. Às pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito - espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro - e, nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante par a o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala é a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento.

13. Conjugado com isso aparece o terceiro aspecto, que gostaria de chamar de universalidade da linguagem. A linguagem não constitui um âmbito fechado do que pode ser dito ao lado de outros âmbitos do indizível, mas ela é omniabrangente. Uma vez que o simples ter em mente já se refere a algo, não há nada que se subtraia fundamentalmente à possibilidade de ser dito. A possibilidade de dizer avanço em deter-se por causa da universalidade da razão. Todo diálogo possui, portanto, uma infinitude interna e não acaba nunca. O diálogo é interrompido, seja porque os interlocutores consideram já ter dito o suficiente, seja por não terem mais nada a dizer. Toda interrupção desse diálogo guarda, por sua vez, uma referência interna à retomada do diálogo.

3 Verdade e método, vol. I, p. 7O4s.
4 Original: wenn wir von dem Spiel der wellen oderspielden Mücken.sprechen.


14. Fazemos essa experiência, às vezes de maneira dolorosa, quando nos exigem um enunciado ou uma declaração. A pergunta que se deve responder - pense-se no exemplo extremo do interrogatório ou da declaração diante de um tribunal - é como uma barreira que se ergue contra o espírito da linguagem que quer expressar-se e dialogar ("Aqui falo eu" ou "Responda à minha pergunta!"). Tudo que é dito não tem sua verdade simplesmente em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito. Todo enunciado é motivado, isto é, a tudo que é dito podemos perguntar com razão: "Por que dizes isso?" Um enunciado só consegue tornar-se compreensível quando no dito compreende-se também o não dito. Sabemos isso sobretudo pelo fenômeno da linguagem. Uma pergunta da qual não sabemos a motivação não pode ser respondida. Pois é só a história da motivação da pergunta que abre o âmbito a partir do qual pode-se procurar e dar uma resposta. Assim, tanto no perguntar quanto no responder dá-se um diálogo infinito em cujo espaço se dão palavra e resposta. Tudo que é dito encontra-se nesse espaço.

15. Podemos esclarecer isso através de urna experiência comum a todos nós. Trata-se da tradução ou da leitura de traduções de línguas estrangeiras. O que o tradutor tem diante de si é um texto de linguagem, isto é, algo dito oralmente ou por escrito que ele deve traduzir para a própria língua. Ele está ligado ao texto que tem diante de si e não pode simplesmente transportar o material da língua estrangeira para sua própria língua sem transformar-se ele próprio no sujeito que diz. Isso significa porém que ele deve conquistar em si próprio o espaço infinito do dizer que corresponde ao que é dito na língua estrangeira. Todos sabemos que é uma tarefa difícil. Sabemos como a tradução unidimensionaliza o que é dito na língua estrangeira. Cria-se uma dimensão em que o sentido das palavras e a forma das frases da tradução imitam o original, mas não se cria espaço para a tradução. Falta-lhe aquele terceiro plano onde o que é dito originalmente, isto é, o que é dito no original se sustenta em seu âmbito de sentido. É uma barreira inevitável para todas as traduções. Nenhuma tradução pode substituir o original. Engana-se quem pensa que a simples projeção no nível da superfície daquilo que é enunciado no originai deveria facilitar a compreensão da tradução. Isso não acontece por ser impossível traduzir o que no original está como pano de fundo ou nas entrelinhas. Se imaginarmos que essa redução a um sentido simplificado poderia facilitar a compreensão, enganamo-nos. Nenhuma tradução é tão compreensível como O original. O sentido multirrelacional do que é dito - e sentido significa sempre sentido direcional - vem à fala apenas na originalidade do dizer; na repetição e na imitação ele se esvai. Por isso, a tarefa do tradutor nunca deve ser retratar o que é dito, mas colocar-se na direção do que é dito, isto é, no seu sentido, para transferir aquilo que deve ser dito para a direção de seu próprio dizer.

16. Isso aparece exemplarmente naquelas traduções que deveriam possibilitar um diálogo oral, pela intermediação do intérprete, entre pessoas de idiomas diferentes. Um intérprete que se limita a reproduzir o que representam na outra língua as palavras e frases ditas por um
dos interlocutores torna o diálogo incompreensível. O que deve reproduzir não é o que foi dito em seu sentido literal, mas o que o outro quis dizer e disse, deixando muita coisa impronunciada. O limite de sua reprodução também deve ganhar o único espaço que possibilita o diálogo, isto é, a infinitude interna que convém a todo entendimento.

17. A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos. Realmente o homem é o ser que possui linguagem, segundo a afirmação de Aristóteles. Tudo que é humano
deve poder ser dito entre nós.


(GADAMER, H. G. Verdade e Método II. Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2000.)

Nota do blog: No link abaixo encontra-se uma apresentação sobre o conceito linguagem;
http://www.4shared.com/document/XbH9M40d/LINGUAGEM.html

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