Inteligência Epistêmica

Inteligência Epistêmica
Convivendo na MATRIX...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A ética do gênero HUMANO


Como vimos no Capítulo III, a concepção complexa do gênero humano comporta a tríade Indivíduo/sociedade/espécie. Os indivíduos são mais do que produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas o mesmo processo é produzido por indivíduos a cada geração. As interações entre indivíduos produzem a sociedade e esta retroage sobre os indivíduos.

A cultura, no sentido genérico, emerge destas interações, reúne-as e confere-lhes valor. Indivíduo/sociedade/espécie sustentam-se, pois, em sentido pleno: apóiam-se, nutrem-se e reúnem-se.

Assim, indivíduo/sociedade/espécie são não apenas inseparáveis, mas co-produtores um do outro. Cada um destes termos é, ao mesmo tempo, meio e fim dos outros. Não se pode absolutizar nenhum deles e fazer de um só o fim supremo da tríade; esta é, em si própria, rotativamente, seu próprio fim. Estes elementos não poderiam, por conseqüência, ser entendidos como dissociados: qualquer concepção do gênero humano significa desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencerà espécie humana.

No seio desta tríade complexa emerge a consciência. Desde então, a ética propriamente humana, ou seja, a antropo-ética, deve ser considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano. Essa é a base para ensinar a ética do futuro.

A antropo-ética supõe a decisão consciente e esclarecida de:

•assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade do nosso ser;

•alcançar a humanidade em nós mesmos em nossa consciência pessoal;

•assumir o destino humano em suas antinomias e plenitude. A antropo-ética instrui-nos a assumir a missão antropológica do milênio:

➢trabalhar para a humanização da humanidade;
➢efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer à vida, guiar a vida; ➢alcançar a unidade planetária na diversidade;
➢respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo;
➢desenvolver a ética da solidariedade;
➢desenvolver a ética da compreensão;
➢ensinar a ética do gênero humano.

A antropo-ética compreende, assim, a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspiração e vontade, mas também aposta no incerto. Ela é consciência individual além da individualidade.

1. O CIRCUITO INDIVÍDUO/SOCIEDADE:

ENSINAR A DEMOCRACIA

Indivíduo e Sociedade existem mutuamente. A democracia favorece a relação rica e complexa indivíduo/sociedade, em que os indivíduos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente.

A democracia fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados e, desse modo, reduz a servidão (que determina o poder que não sofre a retroação daqueles que submete); nesse sentido, a democracia é mais do que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos.

Diferentemente das sociedade democráticas que funcionam graças às liberdades individuais e à responsabilização dos indivíduos, as sociedades autoritárias ou totalitárias colonizam os indivíduos, que não são mais do que sujeitos; na democracia, o indivíduo é cidadão, pessoa jurídica e responsável; por um lado, ex- prime seus desejos e interesses, por outro, é responsável e solidário com sua cidade.

1.1 Democracia e complexidade

A democracia não pode ser definida de modo simples. A soberania do povo cidadão comporta ao mesmo tempo a autolimitação desta soberania pela obediência às leis e a transferência da soberania aos eleitos. A democracia comporta ao mesmo tempo a autolimitação do poder do Estado pela separação dos poderes, a garantia dos direitos individuais e a proteção da vida privada.

A democracia, evidentemente, necessita do consenso da maioria dos cidadãos e do respeito às regras democráticas. Necessita de que a maioria dos cidadãos acredite na democracia. Mas, do mesmo modo que o consenso, a democracia necessita de diversidade e antagonismos.

A experiência do totalitarismo enfatizou o caráter-chave da democracia: seu elo vital com a diversidade. A democracia supõe e nutre a diversidade dos interesses, assim como a diversidade de idéias. O respeito à diversidade significa que a democracia não pode ser identificada com a ditadura da maioria sobre as minorias; deve comportar o direito das minorias e dos contestadoresà existência e à expressão, e deve permitir a expressão das idéias heréticas e desviantes. Do mesmo modo que é preciso proteger a diversidade das espécies para salvaguardar a biosfera, é preciso proteger a diversidade de idéias e opiniões, bem como a diversidade de fontes de informação e de meios de informação (impressa, mídia), para salva-guardar a vida democrática.

A democracia necessita ao mesmo tempo de conflitos de idéias e de opiniões, que lhe conferem sua vitalidade e produtividade. Mas a vitalidade e a produtividade dos conflitos só podem se expandir em obediência às regras democráticas que regulam os antagonismos, substituindo as lutas físicas pelas lutas de idéias, e que determinam, por meio de debates e das eleições, o vencedor provisório das idéias em conflito, aquele que tem, em troca, a responsabilidade de prestar contas da aplicação de suas idéias.

Desse modo, exigindo ao mesmo tempo consenso, diversidade e conflituosidade, a democracia é um sistema complexo de organização e de civilização políticas que nutre e se nutre da autonomia de espírito dos indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão, do seu civismo, que nutre e se nutre do ideal Liberdade/Igualdade/Fraternidade, o qual comporta uma conflituosidade criadora entre estes três termos inseparáveis. A democracia constitui, portanto, um sistema político com- plexo, no sentido de que vive de pluralidades, concorrências e antagonismos, permanecendo como comunidade.

Assim, a democracia constitui a união entre a união e a desunião; tolera e nutre-se endemicamente, às vezes explosivamente, de conflitos que lhe conferem vitalidade. Vive da pluralidade, até mesmo na cúpula do Estado (divisão dos poderes executivo, legislativo, judiciário), e deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria.

O desenvolvimento das complexidades políticas, econômicas e sociais nutre os avanços da individualidade. Esta se afirma em seus direitos (do homem e do cidadão) e adquire liberdades existenciais (escolha autônoma do cônjuge, da residência, do lazer...).

1.2 A dialógica democrática Assim, todas as características importantes da democracia têm um caráter dialógico que une de modo complementar termos antagônicos: consenso/conflito, liberdade/igualdade/fraternidade, comunidade nacional/antagonismos sociais e ideológicos.

Enfim, a democracia depende das condições que dependem de seu exercício (espírito cívico, aceitação da regra do jogo democrático). As democracias são frágeis, vivem conflitos, e estes podem fazê-la submergir. A democracia ainda não está generalizada em todo o planeta, que tanto comporta ditaduras e resíduos de totalitarismo do século XX, quanto germes de novos totalitarismos. Continuará ameaçada no século XXI. Além disso, as democracias existentes não estão concluídas, mas incompletas ou inacabadas.

A democratização das sociedades ocidentais foi um longo processo que continuou de maneira muito irregular em certas áreas, como o acesso das mulheres à igualdade com os homens no casal, no trabalho, na carreira pública. O socialismo ocidental não conseguiu democratizar a organização econômica/social de nossas sociedades.

As empresas permanecem sistemas autoritários hierárquicos, parcialmente democratizados, na base, por conselhos ou sindicatos. É certo que há limites à democratização em organizações cuja eficácia é fundada na obediência, como no Exército. Mas podemo-nos questionar se, como algumas empresas o descobrem, é possível adquirir outra eficácia por meio do apelo para a iniciativa e para a responsabilidade dos indivíduos ou dos grupos.

De todo modo, nossas democracias comportam carência e lacunas. Assim, os cidadãos envolvidos não são consultados sobre as alternativas em matéria de transportes, por exemplo (TGV, aviões cargueiros, auto-estradas etc.).

Não existem apenas democracias inacabadas. Existem processos de regressão democrática que tendem a posicionar os indivíduos à margem das grandes decisões políticas (com o pretexto de que estas são muito“ complicadas” de serem tomadas e devem ser decididas por“ expertos” tecnocratas), a atrofiar competências, a ameaçar a diversidade e a degradar o civismo.

Estes processos de regressão estão ligados à crescente complexidade dos problemas e à maneira mutiladora de tratá-los. A política fragmenta-se em diversos campos e a possibilidade de concebê-los juntos diminui ou desaparece.

Do mesmo modo, ocorre a despolitização da política, que se autodissolve na administração, na técnica (especialização), na economia, no pensamento quantificante (sondagens, estatísticas). A política fragmentada perde a compreensão da vida, dos sofrimentos, dos desamparos, das solidões, das necessidades não- quantificáveis. Tudo isso contribui para a gigantesca regressão democrática, com os cidadãos apartados dos problemas fundamentais da cidade.

1.3 O futuro da democracia

As democracias do século XXI serão cada vez mais confrontadas ao gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Esta enorme máquina não produz apenas conhecimento e elucidação, mas produz também ignorância e cegueira.

Os avanços disciplinares das ciências não trouxeram apenas as vantagens da divisão do trabalho, trouxeram também os inconvenientes da hiperespecialização, do parcelamento e da fragmentação do saber. Este tornou-se mais e mais esotérico (acessível apenas aos especialistas) e anônimo (concentrado nos bancos de dados e utilizado por instâncias anônimas, a começar pelo Estado). Da mesma forma, o conhecimento técnico está reservado aos especialistas, cuja competência em uma área fechada é acompanhado de incompetência quando esta área é parasitada por influências externas ou modificada por algum acontecimento novo. Nessas condições, o cidadão perde o direito ao conhecimento.

Tem o direito de adquirir saber especializado ao fazer estudos ad hoc, mas é despojado na qualidade cidadão, de qualquer ponto de vista global e pertinente. A arma atômica, por exemplo, retirou por completo do cidadão a possibilidade de pensá-la ou controlá-la. Sua utilização é deixada geralmente à decisão pessoal e única do chefe de Estado, sem consulta a nenhuma instância democrática regular. Quanto mais a política se torna técnica, mais a competência democrática regride.

O problema não se apresenta somente para a crise ou a guerra. É problema da vida cotidiana: o desenvolvimento da tecnoburocracia instaura o reinado dos peritos em áreas que, até então, dependiam de discussões e decisões políticas; ele suplanta os cidadãos nos domínios abertos às manipulações biológicas da paternidade, da maternidade, do nascimento, da morte. Estes problemas, com raras exceções, não entraram na consciência política nem no debate democrático do século XX.

De maneira mais profunda, o fosso que cresce entre a tecnociência esotérica, hiperespecializada, e os cidadãos cria a dualidade entre os que conhecem cujo conhecimento é de resto parcelado, incapaz de textualizar e globalizar e os ignorantes, isto é, o conjunto dos cidadãos. Desse modo, cria-se nova fratura social entre uma “nova classe” e os cidadãos.

O mesmo processo está em andamento no acesso às novas tecnologias de comunicação entre os países ricos e os países pobres. Os cidadãos são expulsos do campo político, que é cada vez mais dominado pelos “ expertos” , e o domínio da “nova classe” impede de fato a democratização do conhecimento.

Nessas condições, a redução do político ao técnico e ao econômico, a redução do econômico ao crescimento, a perda dos referenciais e dos horizontes, tudo isso conduz ao enfraquecimento do civismo, à fuga e ao refúgio na vida privada, a alternância entre apatia e revolta violenta e, assim, a despeito da permanência das instituições democráticas, a vida democrática se enfraquece.

Nessas condições, impõe-se às sociedades reputadas como democráticas a necessidade de regenerar a democracia, enquanto, em grande parte do mundo, se apresenta o problema de gerar democracia, ao mesmo tempo em que as necessidades planetárias nos reclamam gerar nova possibilidade democrática nesta escala.

A regeneração democrática supõe a regeneração do civismo, a regeneração do civismo supõe a regeneração da solidariedade e da responsabilidade, ou seja, o desenvolvimento da antropo-ética. (15)

15. Poder-se-ia nos perguntar, finalmente, se a escola não poderia ser prática e concreta- mente um laboratório de vida democrática. Obviamente, tratar-se-ia de democracia limitada, no sentido de que um professor não seria eleito por seus alunos, de que a necessária autodisciplina coletiva não poderia eliminar a disciplina imposta e igualmente no sentido de que a igualdade de princípio entre os que sabem e os que aprendem não poderia ser abolida.

Todavia (e de qualquer maneira a autonomia adquirida o pede, pela faixa etária dos adolescentes), a autoridade não poderia ser incondicional, e poderiam ser instauradas regras de questionamento das decisões consideradas arbitrárias, especialmente com a instituição de um conselho de classe eleito pelos alunos, ou mesmo por instâncias de arbitragem externas. A reforma francesa dos liceus, realizada em 1999, instaura este tipo de mecanismo.

Mas, sobretudo, a sala de aula deve ser um local de aprendizagem do debate argumentado, das regras necessáriasà discussão, da tomada de consciência das necessidades e dos procedimentos de compreensão do pensamento do outro, da escuta e do respeito às vozes minoritárias e marginalizadas. Por isso, a aprendizagem da compreensão deve desempenhar um papel capital no aprendizado democrático.


2. O CIRCUITO INDIVÍDUO/ESPÉCIE:

ENSINAR A CIDADANIA TERRESTRE

A ligação ética do indivíduo à espécie humana foi afirmada desde as civilizações da Antiguidade. Foi o autor latino Terêncio que, no século II antes da era cristã, dizia, por intermédio de um dos personagens do "O homem que a si mesmo castiga: Homo sum, humani nihil a me alienum puto”(“ Sou homem, nada do que é humano me é estranho.” ). Esta antropo-ética foi recoberta, obscurecida, minimizada pela séticas culturais diversas e fechadas, mas não deixou de ser mantida nas grandes religiões universalistas e de ressurgir nas éticas universalistas, no humanismo, nos direitos do homem, no imperativo kantiano.

Kant já dizia que a finitude geográfica de nossa terra impõe a seus habitantes o princípio de hospitalidade universal, que reconhece ao outro o direito de não ser tratado como inimigo.

A partir do século XX, a comunidade de destino terrestre impõe de modo vital a solidariedade.

3. A HUMANIDADE COMO DESTINO PLANETÁRIO

A comunidade de destino planetário permite assumir e cumprir esta parte de antropo-ética, que se refere à relação entre indivíduo singular e espécie humana como todo.

Ela deve empenhar-se para que a espécie humana, sem deixar de ser a instância biológico-reprodutor a do humano, se desenvolva e dê, finalmente, com a participação dos indivíduos e das sociedades, nascimento concreto à Humanidade como consciência comum e solidariedade planetária do gênero humano. A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma“Pátria” , a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo. A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez, ameaçada de morte; a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaça de autodestruição, o imperativo tornou-se salvar a Humanidade, realizando-a.

Na verdade, a dominação, a opressão, a barbárie humanas permanecem no planeta e agravam-se. Trata-se de um problema antropo-histórico fundamental, para o qual não há solução a priori, apenas melhoras possíveis, e que somente poderia tratar do processo multidimensional que tenderia a civilizar cada um de nós, nossas sociedades, a Terra. Sós e em conjunto com a política do homem, (16) a política de civilização,
(17) a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra-Pátria reduziriam a ignomínia no mundo.

16. Cf. Edgar Morin. Introductionà une politique de l’homme, nouvelleédition. Le Seuil Points, 1999.
17. Cf. Edgar Morin, Sami Naïr. Politique de civilisation, Arlea, 1997.


Por muito tempo ainda (cf. Capítulo III), a expansão e a livre expressão dos indivíduos constituem nosso propósito ético e político para o planeta.

Isso supõe ao mesmo tempo o desenvolvimento da relação indivíduo/sociedade, no sentido democrático, e o aprimoramento da relação indivíduo/espécie, no sentido da realização da Humanidade; ou seja, a permanência integrada dos indivíduos no desenvolvimento mútuo dos termos da tríade indivíduo/sociedade/espécie.

Não possuímos as chaves que abririam as portas de um futuro melhor. Não conhecemos o caminho traçado.“El camino se hace al andar ”(18) (Antonio Machado).

18.“Ao andar se faz o caminho.”

Podemos, porém, explicitar nossas finalidades: a busca da hominização na humanização, pelo acesso à cidadania terrena. Por uma comunidade planetária organizada: não seria esta a missão da verdadeira Organização das Nações Unidas?

Nenhum comentário: