Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ensinar a condição HUMANA


A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.

Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Como vimos (Capítulo I), todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente.

“Quem somos?” é inseparável de “Onde estamos?”, “De onde viemos?”, “ Para onde vamos?” Interrogar nossa condição humana implica questionar pri- meiro nossa posição no mundo. O fluxo de conhecimentos, no final do século XX, traz nova luz sobre a situação do ser humano no universo.

Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as idéias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio Homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas.

O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça. Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bio-anatômico.

As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas.

Assim, a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece“ como um rastro na areia” . Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes.

Disso decorre que, para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, bem como integrar (na educação do futuro) a contribuição inestimável das humanidades, não somente a filosofia e a história, mas também a literatura, a poesia, as artes...

1. ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO DO SER HUMANO

Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza.

1.1 A condição cósmica

Abandonamos recentemente a idéia do Universo ordenado, perfeito, eterno pelo universo nascido da irradiação, em devenir disperso, onde atuam, de modo complementar, concorrente e antagônico, a ordem, a desordem e a organização. Encontramo-nos no gigantesco cosmos em expansão, constituído de bilhões de galáxias e de bilhões e bilhões de estrelas.

Aprendemos que nossa Terra era um minúsculo pião que gira em torno de um astro errante na periferia de pequena galáxia de subúrbio. As partículas de nossos organismos teriam aparecido desde os primeiros segundos de existência de nosso cosmo há (talvez?) quinze bilhões de anos; nossos átomos de carbono formaram-se em um ou vários sóis anteriores ao nosso; nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra; estas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química: uma auto-organização viva.

A epopéia cósmica da organização, continuamente sujeita às forças da desorganização e da dispersão, é também a epopéia da religação que, sozinha, impediu que o cosmos se dispersasse ou se desvanecesse ao nascer.

No seio da aventura cósmica, no ápice do desenvolvimento prodigioso de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos a aventura à nossa maneira.

1.2 A condição física

Uma porção de substância física organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra; por meio de imersão marinha, de banhos químicos, de descargas elétricas, adquiriu Vida.

A vida é solar: todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta cuspido pelo Sol: ela é a transformação de uma torrente fotônica resultante de resplandecentes turbilhões solares.

Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena.

1.3 A condição terrestre

Pertencemos ao destino cósmico, porém estamos marginalizados: nossa Terra é o terceiro satélite de um sol destronado de seu posto central, convertido em astro pigmeu errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão...

Nosso planeta agregou-se há cinco bilhões de anos, a partir, provavelmente, de detritos cósmicos resultantes da explosão de um sol anterior, e há quatro bilhões de anos a organização viva emergiu de um turbilhão macromolecular em meio a tormentas e convulsões telúricas.

A Terra autoproduziu-se e auto-organizou-se na dependência do Sol; constituiu-se em complexo biofísico a partir do momento em que se desenvolveu a biosfera.

Somos a um só tempo seres cósmicos e terrestres. A vida nasceu de convulsões telúricas, e sua aventura correu perigo de extinção ao menos por duas vezes (no fim da era primária e durante a secundária).

Desenvolveu-se não apenas em diversas espécies, mas também em ecossistemas em que as predações e devorações constituíram a cadeia trófica de dupla face: a da vida e a da morte.

Nosso planeta erra no cosmo. Devemos assumir as conseqüências da situação marginal, periférica que é a nossa. Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica.

1.4 A condição humana

A importância da hominização é primordial à educação voltada para a condição humana, porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas, nossa condição humana. A antropologia pré-histórica mostra-nos como a hominização é uma aventura de milhões de anos, ao mesmo tempo descontínua — surgimento de novas espécies: habilis, erectus, neanderthal, sapiens, e desaparecimento das precedentes, aparecimento da linguagem e da cultura — e contínua, no sentido de que prossegue em um processo de bipedização, manualização, erguimento do corpo, cerebralização, (5) juvenescimento (o adulto que conserva os caracteres não especializados do embrião e os caracteres psicológicos da juventude), de complexificação social, processo durante o qual aparece a linguagem propriamente humana, ao mesmo tempo que se constitui a cultura, capital adquirido de saberes, de fazeres, de crenças e mitos transmitidos de geração em geração...

A hominização conduz a novo início. O hominídeo humaniza-se. Doravante, o conceito de homem tem duplo princípio; um princípio biofísico e um psico-sócio-cultural, um remetendo ao outro.

Somos originários do cosmos, da natureza, da vida, mas, devido à própria humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa consciência, tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos parece secretamente íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o mundo físico e distanciam-nos dele. O próprio fato de considerar racional e cientificamente o universo separa-nos dele. Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo.

É neste“ além” que tem lugar a plenitude da humanidade.

À maneira de ponto do holograma, trazemos no seio de nossa singularidade não somente toda a humanidade e toda a vida, mas também quase todo o cosmos, incluindo seu mistério que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza humana. Mas não somos seres que poderiam ser conhecidos e compreendidos unicamente a partir da cosmologia, da física, da biologia, da psicologia...

5. Australopiteco (crânio 508 cm3), Homo habilis (608 cm3), Homo erectus (800-1100 cm3), homem moderno (1200-1500 cm3).

2. O HUMANO DO HUMANO

2.1 Unidualidade O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e na embriaguez, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos, e é nesta hipervitalidade que o Homo sapiens é também Homo demens.

O homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas, se não dispusesse plenamente da cultura, seria um primata do mais baixo nível. A cultura acumula em si o que é conservado, transmitido, aprendido, e comporta normas e princípios de aquisição.

2.2 O circuito cérebro/mente/cultura

O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente(mind), isto é, capacidade de consciência e pensamento, sem cultura. A mente humana é uma criação que emerge e se afirma na relação cérebro-cultura.

Com o surgimento da mente, ela intervém no funcionamento cerebral e retroage sobre ele. Há, portanto, uma tríade em circuito entre cérebro / m ente / cultura, em que cada um dos termos é necessário ao outro. A mente é o surgimento do cérebro que suscita a cultura, que não existiria sem o cérebro.

2.3 O circuito razão/afeto/pulsão

Encontramos, ao mesmo tempo, uma tríade bioantropológica distinta de cérebro / mente/ cultura: decorre da concepção do cérebro triúnico de Mac Lean. (6)

O cérebro humano contém:
a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro reptiliano, fonte da agressividade, do cio, das pulsões primárias,
b)mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo,
c) o córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a envolver todas as estruturas do encéfalo e a formar os dois hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente.

Assim emerge outra face da complexidade humana, que integra a animalidade (mamífero e réptil) na humanidade e a humanidade na animalidade. (7)

As relações entre as três instâncias são não apenas complementares, mas também antagônicas, comportando conflitos bem conhecidos entre a pulsão, o coração e a razão; correlativamente a relação triúnica não obedece à hierarquia razão /afetividade / pulsão; há uma relação instável, permutante, rotativa entre estas três instâncias. A racionalidade não dispõe, portanto, de poder supremo. É uma instância concorrente e antagônica às outras instâncias de uma tríade inseparável, e é frágil: pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade ou pela pulsão. A pulsão homicida pode servir-se da maravilhosa máquina lógica e utilizar a racionalidade técnica para organizar e justificar suas ações.

6. P.D. MacLean, The triune brain, in Smith(F.Q.) ed. The Neurosciences, Second Study Program, Rockefeller University Press, Nova York, 1970.

7. Como vimos no capítulo precedente, isso leva-nos a associar estreitamente inteligência a afetividade, o que indicam claramente os trabalhos de A. Damasioi, L’erreur de Descartes, ed. O. Jacob, Paris; e de J. M. Vincent, Biologie des Passions, ed. O.Jacob, Paris.


2.4 O circuito indivíduo/sociedade/espécie

Finalmente, existe a relação triádica indivíduo / sociedade / espécie. Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas este processo deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos.

As interações entre indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura, e que retroage sobre os indivíduos pela cultura.

Indivíduo Sociedade Espécie Não se pode tornar o indivíduo absoluto e fazer dele o fim supremo desse circuito; tampouco se pode fazê-lo com a sociedade ou a espécie. No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que vive para o indivíduo e para a sociedade.

Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade. Entretanto, podemos considerar que a plenitude e a livre expressão dos indivíduos-sujeitos constituem nosso propósito ético e político, sem, entretanto, pensarmos que constituem a própria finalidade da tríade indivíduo / sociedade/ espécie. A complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencerà espécie humana.

3. UNITAS MULTIPLEX: UNIDADE E DIVERSIDADE HUMANA

Cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana.

A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens.

A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno.

A educação deverá ilustrar este princípio de unidade/diversidade em todas as esferas.

3.1 A esfera individual

Na esfera individual, existe unidade/diversidade genética. Todo ser humano traz geneticamente em si a espécie humana e compreende geneticamente a própria singularidade anatômica, fisiológica. Há unidade/diversidade cerebral, mental, psicológica, afetiva, intelectual, subjetiva: todo ser humano carrega, de modo cerebral, mental, psicológico, afetivo, intelectual e subjetivo, os caracteres fundamentalmente comuns e ao mesmo tempo possui as próprias singularidades cerebrais, mentais, psicológicas, afetivas, intelectuais, subjetivas...

3.2 A esfera social

Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas (todas diversas a partir de uma estrutura de dupla articulação comum, o que nos torna gêmeos pela linguagem e separados pelas línguas), das organizações sociais e das culturas.

3.3 Diversidade cultural e pluralidade de indivíduos

Diz-se justamente a cultura, diz-se justamente as culturas.

A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social.

Não há sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas. As técnicas podem migrar de uma cultura para outra, como foi o caso da roda, da atrelagem, da bússola, da imprensa. Foi assim também com determinadas crenças religiosas, depois com idéias leigas que, nascidas em uma cultura singular, puderam se universalizar. Mas existe em cada cultura um capital específico de crenças, idéias, valores, mitos e, particularmente, aqueles que unem uma comunidade singular a seus ancestrais, suas tradições, seus mortos.

Os que vêem a diversidade das culturas tendem a minimizar ou a ocultar a unidade humana; os que vêem a unidade humana tendem a considerar como secundária a diversidade das culturas. Ao contrário,é apropriado conceber a unidade que assegure e favoreça a diversidade, a diversidade que se inscreve na unidade.

O duplo fenômeno da unidade e da diversidade das culturas é crucial.

A cultura mantém a identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico.

As culturas são aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram nelas não somente os saberes e técnicas, mas também idéias, costumes, ali- mentos, indivíduos vindos de fora. As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras. Verificam-se também mestiçagens culturais bem-sucedidas, como as que produziram o flamenco, a música da América Latina, or aï*.

* N. T. Música popular moderna da Argélia. (Le Nouveau Petit Robert. Dictionnaires Le Robert, 1994).

Ao contrário, a desintegração de uma cultura sob o efeito destruidor da dominação técnico-civilizacional é uma perda para toda a humanidade, cuja diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros.

O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Disse-mos que todo ser humano, tal como o ponto de um holograma, traz em si o cosmo. Devemos ver também que todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poli existência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis.

Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes...

3.4 Sapiens/demens

O século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas:

sapiense demens (sábio e louco)
fabere ludens (trabalhador e lúdico)
empiricuse imaginarius (empírico e imaginário)
economicuse consumans (econômico e consumista)
prosaicuse poeticus (prosaico e poético)


O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). O homem prosaico é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do amor, do êxtase. O amor é poesia.

Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana, o fim de um amor devolve-nos à prosa.

Assim, o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte.

Por toda parte, uma atividade técnica, prática, intelectual testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônias, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios,“ consumismos” , testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens.

As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião.

Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiense Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.

3.5 Homo complexus

Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais.

Tudo isso constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio;é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas Idéias, mas que duvida dos deuses e critica as Idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. E quando, na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros.

A loucura é também um problema central do homem e não apenas seu dejeto ou sua doença. O tema da loucura humana foi evidente para a filosofia da Antiguidade, a sabedoria oriental, os poetas de todos os continentes, os moralistas, Erasmo, Montaigne, Pascal, Rousseau. Volatilizou-se não somente na euforia ideológica humanista que destinou o homem a reger o universo, mas também nas ciências humanas e na filosofia.

A demência não levou a espécie humana à extinção (só as energias nucleares liberadas pela razão científica e só o desenvolvimento da racionalidade técnica dependente da biosfera poderão conduzi-la ao desaparecimento).

Entretanto, tanto tempo parece ter-se perdido, desperdiçado com ritos, cultos, delírios, decorações, danças e muitas ilusões...

A despeito disso, o desenvolvimento técnico, em seguida o científico, foi fulgurante; as civilizações produziram filosofia e ciência; a Humanidade dominou a Terra.

Isso significa que os progressos da complexidade se fazem ao mesmo tempo, apesar, com e por causa da loucura humana. A dialógica sapiens/demens foi criadora e também destruidora; o pensamento, a ciência, as artes foram irrigadas pelas forças profundas da afetividade, por sonhos, angústias, desejos, medos, esperanças. Nas criações humanas há sempre uma dupla pilotagem sapiens/demens. Demens inibiu, mas também favoreceu sapiens.

Platão já havia observado que Diké, a lei sábia, é filha de Übris, o descomedimento. Tal furor cego destrói as colunas de um templo de servidão, como a tomada da Bastilha e, ao contrário, tal culto da Razão nutre a guilhotina.

A possibilidade do gênio decorre de que o ser humano não é completamente prisioneiro do real, da lógica (neocórtex), do código genético, da cultura, da sociedade. A pesquisa, a descoberta avançam no vácuo da incerteza e da incapacidade de decidir. O gênio brota na brecha do incontrolável, justamente onde a loucura ronda. A criação brota da união entre as profundezas obscuras psicoafetivas e a chama viva da consciência.

Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o Destino multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis.

Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra...

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