Inteligência Epistêmica

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Convivendo na MATRIX...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ensinar a identidade TERRENA

Apenas o sábio mantém o todo constantemente na mente, jamais esquece o mundo, pensa e age em relação ao cosmo.”
Groethuysen

Pela primeira vez, o homem compreendeu realmente que é um habitante do planeta e, talvez, deva pensar ou agir sob novo aspecto, não somente sob o de indivíduo, família ou gênero, Estado ou grupo de Estados, mas também sob o aspecto planetário.”
Vernadski

Como os cidadãos do novo milênio poderiam refletir sobre seus próprios problemas e aqueles do seu tempo? É preciso que compreendam tanto a condição humana no mundo como a condição do mundo humano, que, ao longo da história moderna, se tornou condição da era planetária. Entramos a partir do século XVI na era planetária, e encontramo-nos desde o final do século XX na fase da mundialização.

A mundialização, no estágio atual da era planetária, significa primeiramente, como disse o geógrafo Jacques Levy:“o surgimento de um objeto novo, o mundo como tal”. Porém, quanto mais somos envolvidos pelo mundo, mais difícil é para nós apreendê-lo.

Na era das telecomunicações, da informação, da Internet, estamos submersos na complexidade do mundo, as incontáveis informações sobre o mundo sufocam nossas possibilidades de inteligibilidade.

Daí surge a esperança de destacar um problema vital por excelência, que subordinaria os demais problemas vitais. Mas este problema vital é constituído pelo conjunto de problemas vitais, ou seja, a intersolidariedade complexa de problemas, antagonismos, crises, processos descontrolados. O problema planetário é um todo que se nutre de ingredientes múltiplos, conflitivos, nascidos de crises; ele os engloba, ultrapassa-os e nutre-os de volta.

O que agrava a dificuldade de conhecer nosso Mundo é o modo de pensar que atrofiou em nós, em vez de desenvolver, a aptidão de contextualizar e de globalizar, uma vez que a exigência da era planetária é pensar sua globalidade, a relação todo-partes, sua multidimensionalidade, sua complexidade o que nos remete à reforma do pensamento, tratada no capítulo II, necessária para conceber o contexto, o global, o multidimensional, o complexo.

É a complexidade (a cadeia produtiva/destrutiva das ações mútuas das partes sobre o todo e do todo sobre as partes) que apresenta problema.

Necessitamos, desde então, conceber a insustentável complexidade do mundo no sentido de que é preciso considerar a um só tempo a unidade e a diversidade do processo planetário, suas complementaridades ao mesmo tempo que seus antagonismos.

O planeta não é um sistema global, mas um turbilhão em movimento, desprovido de centro organizador. O planeta exige um pensamento policêntrico capaz de apontar o universalismo, não abstrato, mas consciente da unidade / diversidade da condição humana; um pensamento policêntrico nutrido das culturas do mundo.

Educar para este pensamento é a finalidade da educação do futuro, que deve trabalhar na era planetária, para a identidade e a consciência terrenas.

1. A ERA PLANETÁRIA

As ciências contemporâneas ensinam-nos que estaríamos a 15 bilhões de anos de uma catástrofe indizível a partir da qual se criou o cosmo, talvez cinco milhões de anos desde que começou a aventura da hominização, que nos teria diferenciado dos outros antropóides, a cem mil anos do surgimento do Homo sapiense a dez mil anos após o nascimento das civilizações históricas, e que entramos no início do terceiro milênio da era dita cristã. A história humana começou por uma diáspora planetária que afetou todos os continentes, em seguida entrou, nos tempos modernos, na era planetária da comunicação entre os diversos fragmentos da diáspora humana.

A diáspora da humanidade não produziu nenhuma cisão genética: pigmeus, negros, amarelos, índios, brancos vêm da mesma espécie, possuem os mesmos caracteres fundamentais de humanidade. Mas ela levou à extraordinária diversidade de línguas, culturas, destinos, fontes de inovação e de criação em todos os domínios. A riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte de sua criatividade está em sua unidade geradora.

No final do século XV europeu, a China dos Ming e a Índia mongol são as mais importantes civilizações do Globo. O Islamismo, na Ásia e na África, é a religião mais expandida da Terra. O Império Otomano, que da Ásia se estendeu pela Europa Oriental, aniquilou Bizâncio e ameaçou Viena, torna-se uma grande potência da Europa. O Império dos Incas e o Império dos Astecas dominam nas Américas e Cuzco, assim como Tenochtitlán, ultrapassa em população, monumentos e esplendor as cidades de Madri, Lisboa, Paris, Londres capitais de jovens e pequenas nações do oeste europeu.

Entretanto, a partir de 1492, são estas jovens e pequenas nações que se lançam à conquista do Globo e, por meio de aventuras, guerras e morte, engendram a era planetária que, desde então, leva os cinco continentes à comunicação para o melhor e o pior. A dominação do ocidente europeu sobre o resto do mundo provoca catástrofes de civilização especialmente nas Américas, destruição irremediável e conduz a escravidão terrível.

Assim, a era planetária abre-se e desenvolve-se na e pela violência, pela destruição, pela escravidão e pela exploração feroz das Américas e da África. Os bacilos e os vírus da Eurásia invadem as Américas provocando hecatombes, semeando varíola, herpes, gripe, tuberculose, enquanto levam da América o treponema da sífilis que contamina de sexo em sexo até Shangai.

Os europeus introduzem em suas terras milho, batata, feijão, tomate, mandioca, batata-doce, cacau, tabaco vindos da América. Levam para a América carneiros, gado bovino, cavalos, cereais, vinhedos, oliveiras e plantas tropicais, arroz, inhame, café, cana-de-açúcar.

A planetarização desenvolve-se pelo aporte da civilização européia aos continentes, com armas, técnicas, concepções em todos os seus entrepostos, pedágios, zonas de penetração. A indústria e a técnica atingem um vulto nunca antes conhecido por alguma civilização. O progresso econômico, o desenvolvimento das comunicações, a inclusão dos continentes subjugados no mercado mundial determinam formidáveis movimentos de população, que vão ampliar o crescimento demográfico (8) generalizado. Na segunda metade do século XIX, 21 milhões de europeus atravessaram o Atlântico em direção às duas Américas. Produziram-se fluxos migratórios também na Ásia, onde os chineses se instalam como comerciantes no Sião, em Java e na península da Malásia, embarcam para a Califórnia, para a Colúmbia Britânica, para a Nova Gales do Sul e para Polinésia, enquanto os hindus se fixam em Natal* e na África Oriental.

8. Em um século, a Europa passou de 190 para 423 milhões de habitantes; o Globo, de 900 milhões para 1,6 bilhão.

* N. T. Natal, província da África do Sul. (Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse. Editora Larousse do Brasil. 1987).

A planetarização provoca, no século XX, duas guerras mundiais, duas crises econômicas mundiais e, após 1989, a generalização da economia liberal denominada mundialização. A economia mundial é cada vez mais um todo interdependente: cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. O planeta encolhe. Foram precisos três anos para que Magellan desse a volta ao mundo por mar (1519-22). Eram necessários ainda 80 dias para que um intrépido viajante do século XIX, utilizando estradas, trem e navegação a vapor, desse a volta ao mundo. No final do século XX, o avião a jato circunda-o em 24 horas.

E, principalmente, tudo está instantaneamente presente, de um ponto do planeta ao outro, pela televisão, telefone, fax, Internet...

O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isto se verifica não apenas para as nações e povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto de um holograma contém a informação do todo do qual faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo.

Por isso, o europeu, por exemplo, ao acordar cada manhã, ouve uma rádio japonesa e recebe notícias do mundo: erupções vulcânicas, terremotos, golpes de Estado, conferências internacionais chegam a ele, enquanto toma chá do Ceilão, da Índia ou da China, se não estiver tomando um moka da Etiópia ou um arábica da América Latina; veste camiseta, cueca e camisa de algodão do Egito ou da Índia; usa paletó e calças de lã da Austrália, fabricada em Manchester e, depois, em Roubaix-Tourcoing ou, então, blusão de couro chinês com jeans estilo americano. Seu relógio é suíço ou japonês. Seus óculos são feitos de casco de tartaruga equatorial. Pode encontrar em sua mesa, durante o inverno, morangos e cerejas da Argentina ou do Chile, vagens frescas vindas do Senegal, abacates ou abacaxis da África, melões de Guadalupe. Dispõe de garrafas de rum da Martinica, de vodca russa, de tequila mexicana, de bourbon americano. Pode ouvir em casa uma sinfonia alemã regida por um maestro coreano, a não ser que assista em sua tela de vídeo à La Bohème com a “Negra”, Barbara Hendricks, no papel de Mimi e o “Espanhol”, Plácido Domingo, no de Rodolfo.

Enquanto o europeu está neste circuito planetário de conforto, grande número de africanos, asiáticos e sul-americanos acha-se em um circuito planetário de miséria. Sofrem no cotidiano as flutuações do mercado mundial, que afetam as ações do cacau, do café, do açúcar, das matérias-primas que seus países produzem. Foram expulsos do campo por causa dos processos mundializados provenientes do Ocidente, principalmente os progressos da monocultura industrial; camponeses auto-suficientes tornaram-se suburbanos em busca de salário; suas necessidades agora são traduzidas em termos monetários.

Aspiram à vida de bem-estar com a qual os fazem sonhar os comerciais e os filmes do Ocidente. Utilizam recipientes de alumínio ou de plástico, bebem cerveja ou Coca-Cola. Dormem sobre restos recuperados de espuma de polietileno e usam camisetas com estampas americanas. Dançam ao som de músicas sincréticas cujos ritmos tradicionais chegam em orquestrações vindas da América. Dessa maneira, para o melhor e o pior, cada ser humano, rico ou pobre, do Sul ou do Norte, do Leste ou do Oeste, traz em si, sem saber, o planeta inteiro. A mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente e onipresente.

A mundializaçãoé sem dúvida unificadora, mas é preciso acrescentar imediatamente que é também conflituosa em sua essência. A unificação mundializante faz-se acompanhar cada vez mais pelo próprio negativo que ela suscita, pelo efeito contrário: a balcanização. O mundo, cada vez mais, torna-se uno, mas torna-se, ao mesmo tempo, cada vez mais dividido.

Paradoxalmente, foi a própria era planetária que permitiu e favoreceu o parcelamento generalizado dos Estados-nações; de fato, o pedido de emancipação da nação é estimulado por um movimento de ressurgência da identidade ancestral, que ocorre em reação à corrente planetária de homogeneização civilizacional, e esta demanda é intensificada pela crise generalizada do futuro.

Os antagonismos entre nações, religiões, entre laicização e religião, modernidade e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, Oriente e Ocidente, Norte e Sul nutrem-se uns aos outros, e a eles mesclam-se interesses estratégicos e econômicos antagônicos das grandes potências e das multinacionais voltadas para o lucro. São todos estes antagonismos que estão presentes nas zonas ao mesmo tempo de interferências e de fratura, como a grande área sísmica do globo que se inicia na Armênia/ Azerbaijão, atravessa o Oriente Médio e vai até o Sudão. Exasperam-se onde existem religiões e etnias misturadas, fronteiras arbitrárias entre Estados exasperação de rivalidades e negações de toda ordem, como no Oriente Médio.

Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido planetárioúnico; seus fragmentos ficaram isolados, eriçados e intercombatentes. Os Estados dominam o cenário mundial como titãs brutos e ébrios, poderosos e impotentes. Ao mesmo tempo, a onda técnico-industrial sobre o globo tende a suprimir muitas das diversidades humanas, étnicas e culturais. O próprio desenvolvimento criou mais problemas do que soluções e conduziu à crise profunda de civilização que afeta as prósperas sociedades do Ocidente.

Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o desenvolvimento chega a um ponto insustentável, inclusive o chamado desenvolvimento sustentável.

É necessária uma noção mais rica e complexa do desenvolvimento, que seja não somente material, mas também intelectual, afetiva, moral...

O século XX não saiu da idade de ferro planetária; mergulhou nela.

2. O LEGADO DO SÉCULO XX

O século XX foi o da aliança entre duas barbáries: a primeira vem das profundezas dos tempos e traz guerra, massacre, deportação, fanatismo.

A segunda, gélida, anônima, vem do âmago da racionalização, que só conhece o cálculo e ignora o indivíduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma, e que multiplica o poderio da morte e da servidão técnico-industriais.

Para ultrapassar esta era de barbárie, é preciso antes de tudo reconhecer sua herança. Tal herança é dupla, a um só tempo herança de morte e herança de nascimento.

2.1 A herança de morte

O século XX pareceu dar razão à fórmula atroz segundo a qual a evolução humana é o crescimento do poderio da morte. A morte introduzida pelo século XX não é somente a de dezenas de milhões de mortos das duas guerras mundiais e dos campos de extermínio nazistas e soviéticos; é também a de dois novos poderes de morte.

2.1.1 As armas nucleares

O primeiro é o da possibilidade de extinção global de toda a humanidade pelas armas nucleares. Esta ameaça não foi dissipada no limiar do terceiro milênio; ao contrário, cresce com a disseminação e a miniaturização da bomba. O potencial de auto-aniquilamento acompanha daqui em diante a marcha da humanidade.

2.1.2 Os novos perigos

O segundo é a possibilidade de morte ecológica. Desde os anos 70, descobrimos que os dejetos, as emanações, as exalações de nosso desenvolvimento técnico-industrial urbano degradam a biosfera e ameaçam envenenar irremediavelmente o meio vivo ao qual pertencemos: a dominação desenfreada da natureza pela técnica conduz a humanidade ao suicídio.

Por outro lado, as forças de morte que acreditávamos em via de extinção se rebelaram; o vírus da aids invadiu-nos - o primeiro vírus desconhecido que surge —, enquanto bactérias que acreditávamos eliminadas voltam mais resistentes aos anti-bióticos. Dessa forma, a morte reintroduziu-se com virulência em nossos corpos, que acreditávamos estarem daqui para a frente asseptizados.

Enfim, a morte ganhou espaço em nossas almas. As forças autodestrutivas, latentes em cada um de nós, foram particularmente ativadas, sob o efeito de drogas pesadas como a heroína, por toda parte onde se multiplica e cresce a solidão e a angústia.

Assim a ameaça paira sobre nós com a arma termonuclear, envolve-nos com a degradação da biosfera, potencializa-se em cada um de nossos abraços; esconde-se em nossas almas com o chamado mortal das drogas.

2.2 A morte da modernidade

A civilização nascida no Ocidente, soltando suas amarras com o passado, acreditava dirigir-se para o futuro de progresso infinito, movido pelos avanços conjuntos da ciência, da razão, da história, da economia, da democracia.

Entretanto, aprendemos com Hiroshima que a ciência era ambivalente; vimos a razão retroceder e o delírio staliniano colocar a máscara da razão histórica; vimos que não havia leis da História que guiassem irresistivelmente em direção ao porvir radiante; vimos que em parte alguma o triunfo da democracia estava assegurado em definitivo; vimos que o desenvolvimento industrial podia causar danos à cultura e poluições mortais; vimos que a civilização do bem-estar podia gerar ao mesmo tempo mal-estar. Se a modernidade é definida como fé incondicional no progresso, na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta.

2.3 A esperança

Se é verdade que o gênero humano, cuja dialógica cérebro/ mente não está encerrada, possui em si mesmo recursos criativos inesgotáveis, pode-se então vislumbrar para o terceiro milênio a possibilidade de nova criação cujos germes e embriões foram trazidos pelo século XX: a cidadania terrestre. E a educação, que é ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo, encontra-se no cerne dessa nova missão.

2.3.1 A contribuição das contracorrentes

O ocaso do século XX deixou como herança contracorrentes regeneradoras.

Freqüentemente, na história, contracorrentes suscitadas em reação às correntes dominantes podem-se desenvolver e mudar o curso dos acontecimentos. Devemos considerar:

•a contracorrente ecológica que, com o crescimento das degradações e o surgimento de catástrofes técnicas/industriais, só tende a aumentar;

•a contracorrente qualitativa que, em reação à invasão do quantitativo e da uniformização generalizada, se apega à qualidade em todos os campos, a começar pela qualidade de vida;

•a contracorrente de resistência à vida prosaica puramente utilitária, que se manifesta pela busca da vida poética, dedicada ao amor, à admiração, à paixão, à festa;

•a contracorrente de resistênciaà primazia do consumo padronizado, que se manifesta de duas maneiras opostas: uma pela busca da intensidade vivida (“consumismo” ); a outra pela busca da frugalidade e da temperança;

•a contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro;

•a contracorrente, também tímida, que, em reação ao desencadeamento da violência, nutre éticas de pacificação das almas e das mentes.

Pode-se igualmente pensar que todas as aspirações que nutriram as grandes esperanças revolucionárias do século XX, mas que foram frustradas, poderão renascer na forma de nova busca de solidariedade e de responsabilidade.

Poder-se-ia esperar, igualmente, que a necessidade de volta às raízes, que mobiliza hoje fragmentos dispersos da humanidade e provoca a vontade de assumir identidades étnicas ou nacionais, pudesse aprofundar-se e ampliar-se, sem negar-se a si mesmas, nesta volta às raízes, ao seio da identidade humana de cidadãos da Terra-pátria.

Pode-se esperar uma política a serviço do ser humano, inseparável da política de civilização, que abriria o caminho para civilizar a Terra como casa e jardim comuns da humanidade.

Todas essas correntes prometem intensificar-se e ampliar-se ao longo do século XXI e constituir múltiplos focos de transformação, mas a verdadeira transformação só poderia ocorrer com a intertransformação de todos, operando assim uma transformação global, que retroagiria sobre as transformações individuais.

2.3.2 No jogo contraditório dos possíveis

Uma das condições fundamentais para a evolução positiva seria as forças emancipadoras inerentes à ciência e à técnica poderem superar as forças de morte e de servidão. Os desenvolvimentos da tecnociência são ambivalentes.

Encolheram a Terra e deram condição imediata de comunicação a todos os pontos do globo, proporcionaram meios para alimentar todo o planeta e para assegurar a todos os seus habitantes um mínimo de bem-estar, mas, ao contrário, criaram também as piores condições de morte e de destruição.

Os seres humanos servem-se das máquinas, que escravizam energia, mas são, ao mesmo tempo, escravizados por elas. A saga de ficção científica Hypérion, de Dan Simmons, supõe que, em um milênio do futuro, as inteligências artificiais (I.A.) terão domesticado os humanos, sem que estes tenham a consciência disso, e prepararão seu extermínio.

O romance descreve peripécias surpreendentes, ao final das quais um híbrido de humano e I.A., portador da alma do poeta Keats, anuncia nova sabedoria. Este é o problema crucial que se apresenta logo no início do século XX: ficaremos submissos à tecnosfera ou saberemos viver em simbiose com ela?

As possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento das biotecnologias são igualmente prodigiosas para o melhor e para o pior. A genética e a manipulação molecular do cérebro humano permitirão normalizações e padronizações jamais alcançadas pelas doutrinações e propagandas sobre a espécie humana.

Mas permitirão a eliminação de taras deformadoras, a medicina preditiva, o controle, pela mente, do próprio cérebro.

A amplitude e a aceleração das transformações atuais parecem pressagiar mutação ainda mais considerável do que aquela que fez as pequenas sociedades arcaicas de caçadores e coletadores sem Estado, sem agricultura nem cidade, passarem ao neolítico, às sociedades históricas que há oito milênios se desenvolvem no planeta.

Podemos também contar com as inesgotáveis fontes do amor humano.

Certamente o século XX sofreu terrivelmente de carência afetiva, de indiferença, de dureza e de crueldade. Mas produziu também o excesso de amor consagrado a mitos enganosos, ilusões, falsas divindades ou que se petrifica em fetichismos menores como uma coleção de selos.

Podemos igualmente confiar nas possibilidades cerebrais do ser humano ainda em grande parte inexploradas; a mente humana poderia desenvolver aptidões ainda desconhecidas pela inteligência, pela compreensão, pela criatividade. Como as possibilidades sociais estão relacionadas com as possibilidades cerebrais, ninguém pode garantir que nossas sociedades tenham esgotado suas possibilidades de aperfeiçoamento e de transformação e que tenhamos chegado ao fim da História.

Podemos esperar progresso nas relações entre humanos, indivíduos, grupos, etnias, nações. A possibilidade antropológica, sociológica, cultural, espiritual de progresso restaura o princípio da esperança, mas sem certe- za“ científica” , nem promessa“ histórica”.

É uma possibilidade incerta que depende muito da tomada de consciência, da vontade, da coragem, da oportunidade... Do mesmo modo, as tomadas de consciências tornaram-se urgentes e primordiais.

Aquilo que porta o pior perigo traz também as melhores esperanças: é a própria mente humana, e é por isso que o problema da reforma do pensamento tornou-se vital.

3. A IDENTIDADE E A CONSCIÊNCIA TERRENA

A união planetária é a exigência racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência e um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à nossa Terra, considerada como primeira e última pátria. Se a noção de pátria comporta identidade comum, relação de filiação afetiva à substância tanto materna como paterna (inclusa no termo feminino-masculino de pátria), enfim, uma comunidade de destino, então podemos fazer avançar a noção Terra-pátria.

Como indicamos no Capítulo III, temos todos uma identidade genética, cerebral, afetiva comum em nossas diversidades individuais, culturais e sociais. Somos produto do desenvolvimento da vida da qual a Terra foi matriz e nutriz. Enfim, todos os humanos, desde o século XX, vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e de morte e estão unidos na mesma comunidade de destino planetário.

Por isso, é necessário aprender a“ estar aqui” no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; é o que se aprende somente nas e por meio de culturas singulares.

Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemo-nos dedicar não só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender.

Devemos inscrever em nós:

•a consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversidade;

•a consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera): reconhecer nossa união consubstancial com a biosfera conduz ao abandono do sonho prometéico do domínio do universo para nutrir a aspiração de convivibilidade sobre a Terra;

•a consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solidariedade para com os filhos da Terra;

•a consciência espiritual da condição humana que decorre do exercício complexo do pensamento e que nos permite, ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente.

É necessário ensinar não mais a opor o universal às pátrias, mas a unir concentricamente as pátrias—familiares, regionais, nacionais européias e a integrá-las no universo concreto da pátria terrestre.

Não se deve mais continuar a opor o futuro radiante ao passado de servidão e de superstições. Todas as culturas têm virtudes, experiências, sabedorias, ao mesmo tempo que carências e ignorâncias.

É no encontro com seu passado que um grupo humano encontra energia para enfrentar seu presente e preparar seu futuro. A busca do futuro melhor deve ser complementar, não mais antagônica, ao reencontro com o passado.

Todo ser humano, toda coletividade deve irrigar sua vida pela circulação incessante entre o passado, no qual reafirma a identidade ao restabelecer o elo com os ascendentes, o presente, quando afirma suas necessidades, e o futuro, no qual projeta aspirações e esforços.

Nesse sentido, os Estados podem desempenhar papel decisivo, com a condição de que aceitem, em razão do próprio interesse, abandonar sua soberania absoluta acerca de todos os grandes problemas de utilidade comum e sobretudo os problemas de vida ou de morte que ultrapassam sua competência isolada.

De toda maneira, a era de fecundidade dos Estados-nações dotados de poder absoluto está encerrada, o que significa que é necessário não os desintegrar, mas respeitá-los, integrando-os em conjuntos e fazendo-os respeitar o conjunto do qual fazem parte.

O mundo confederado deve ser policêntrico e acêntrico, não apenas política, mas também culturalmente. O Ocidente que se provincializa sente a necessidade do Oriente, enquanto o Oriente quer permanecer ocidentalizando-se.

O Norte desenvolveu o cálculo e a técnica, mas perdeu a qualidade de vida, enquanto o Sul, tecnicamente atrasado, cultiva ainda qualidades de vida.

Uma dialógica deve, de agora em diante, complementar Oriente e Ocidente, Norte e Sul.

A religação deve substituir a disjunção e apelarà “ sim-biosofia” , sabedoria de viver junto. A unidade, a mestiçagem e a diversidade devem-se desenvolver contra a homogeneização e o fechamento.

A mestiçagem não é apenas a criação de novas diversidades a partir do encontro; torna-se, no processo planetário, produto e produtor de religação e de unidade. Introduz a complexidade no âmago da identidade mestiça (cultural ou racial). Com certeza, cada qual pode e deve, na era planetária, cultivar a poliidentidade, que permite integrar a identidade familiar, a identidade regional, a identidade étnica, a identidade nacional, a identidade religiosa ou filosófica, a identidade continental e a identidade terrena. Mas o mestiço, ele sim, pode encontrar nas raízes de sua poliidentidade a bipolaridade familiar, a étnica, a nacional, mesmo a continental, permitindo constituir nele a identidade complexa plenamente humana.

O duplo imperativo antropológico impõe-se: salvar a unidade humana e salvar a diversidade humana. Desenvolver nossas identidades a um só tempo concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa pátria, a de nossa comunidade de civilização, enfim, a de cidadãos terrestres.

Estamos comprometidos, na escala da humanidade planetária, na obra essencial da vida, que é resistir à morte. Civilizar e solidarizar a Terra, transformar a espécie humana em verdadeira humanidade torna-se o objetivo fundamental e global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade.

A consciência de nossa humanidade nesta era planetária deveria conduzir-nos à solidariedade e à comiseração recíproca, de indivíduo para indivíduo, de todos para todos. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão planetária.

Ver Capítulo VI.

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